quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Longe do Paraíso

Os postais de Boas Festas da família Keil Amaral são sempre uma surpresa. Partilho aqui o talento bem-humorado da dupla Lira/Pitum. Um postal inspirado na crise económica.

No canto superior esquerdo da imagem, estão desenhadas as figuras de Lira e Pitum. Dizem eles:

-Olha! É a expulsão do Paraíso!
- Outra vez? Coitados!

No canto inferior esquerdo está escrito: «Saúde, muita amizade e...que não seja esse o vosso caso. São os votos para 2009 da Lira e do Pitum». E são também os meus.

As folgas da menina

Imagem de Tina Baker


Era uma vez uma menina de cinco anos que passava tanto, mas tanto tempo no local de trabalho da mãe que, quando se referia aos fins-de-semana, não dizia 'vem aí o fim-de-semana', mas sim 'vou estar de folga'.

Era uma vez uma menina de cinco anos que passava tanto, mas tanto tempo no local de trabalho da mãe que gostava de brincar a fazer de conta que passava recibos.

Era uma vez uma menina de cinco que passava tanto, mas tanto tempo no local de trabalho da mãe que, um dia, ao ir com a madrinha aos serviços administrativos de uma autarquia, deixou todos os funcionários presos a uma voz pequenina. «Não quero ser adulta», soltou ela. «Ai é? Então diz lá porquê», indagou a madrinha. «Porque os adultos passam a vida a trabalhar, a trabalhar, a trabalhar...e a resolver problemas».

domingo, 28 de dezembro de 2008

Sou toda ouvidos








Dois vídeos, a cor passional. Con Toda Palabra, de Lhasa de Sela; e Where The Wild Roses Grow, Nick Cave & Kylie Minogue.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Sem pés: o peso ou a leveza?




Exposição Juan Muñoz: uma retrospectiva

«Era um sonho atroz logo desde o princípio. Marchar nua, a passo militar, no meio de outras mulheres, era para Tereza a imagem-tipo do horror. Quando morava com a mãe, estava proibida de se fechar à chave na casa de banho. Para a mãe, era uma maneira de lhe dizer: o teu corpo é igual a todos os outros corpos; não tens direito ao pudor; não tens nada que esconder uma coisa que existe de forma idêntica em milhões de exemplares. No universo da mãe, os corpos eram todos iguais e marchavam a passo uns atrás dos outros num interminável desfile. Desde a infância que a nudez era para Tereza a marca da uniformidade obrigatória do campo de concentração; a marca da humilhação.
Ainda havia outra coisa horrível logo no começo do sonho: as mulheres tinham todas que cantar! Com os corpos todos iguais uns aos outros, todos igualmente desvalorizados como simples mecanismos sonoros e sem alma, as mulheres ainda se regozijavam com isso! Era a rejubilante solidariedade das desalmadas. Sentiam-se felizes por estarem libertas do fardo da alma, dessa ilusão da diferença, desse orgulho ridículo, e por serem todas iguais».

Milan Kundera, in A Insustentável Leveza do Ser

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Tempo de desembrulhar

Imagem de Berenika Berenika

Tempo de desembrulhar o que somos, de nos semearmos em campos de carne e osso. Dar, darmo-nos. Atear fogueiras, o crepitar de conversas. Os gestos a criarem raízes. Resgatar o que de nós cheira a infância. A melancolia polvilhada de canela e frutos secos. No virar da esquina do mês, a transição para a continuidade. Uma folha em branco para distendermos o corpo, as vontades, os desejos, os sonhos. Embalar o olhar, respirar como um bebé e dar à luz uma inabalável confiança na vida.

Votos de um [e]terno Natal


Zero Kelvin

Imagem de Daniele Pezzoli

Despido o símbolo, resta a solidão
e o mosaico

a temperatura do vazio.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Conversa de pedra

Imagem de Maury Perseval



Um poema retirado de um lugar que visito com regularidade sequiosa: a poesia de Daniel Faria. Um post que parece 'dialogar' bem com o post da Carla de Elsinore.


(Dizem que ontem)

As mãos eram de granito
Os olhares eram de granito
De granito era a própria pedra

(Trouxeram pedra para o peito do menino)

De granito eram as palavras
Que se trocavam ao preço das moedas

As moedas eram de granito

Aos balcões de granito se comprava
Aos balcões de granito se vendia

Os negócios eram de granito
Os sonhos

(E o granito crescia no menino)


Junto à muralha uma mulher de mão ao vento
Parecia acenar a cada barco
E chamava um nome de menino


(Ontem)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Cinzas



Atenas, Dezembro de 2008: Imagem de Nikolas Giakoumidis/AP Photo



Atenas, Dezembro 2008: Imagem de Louisa Gouliamaki/AFP/Getty Images


Paris em tumulto. Matthew e os gémeos Theo e Isabelle, do filme «Os Sonhadores», de Bernardo Bertolucci, podiam andar por estes dias em Atenas...com as suas contradições em revolução, com a utopia a rondar as pálpebras, com a inocência a arder. A cinza. Uma casa, com cortinas, com vista para o Maio de 1968.

Na noite passada, sonhei com um homem que estava sentado [intacto, na aparência], em ambiente fabril. Talvez resignado. Estátua com respiração. Levanta-se. A revelação. O homem ardia por dentro. Desfaz-se em cinza, no momento de ascensão.

Neste sonho cabemos todos. Todos podemos ser o homem em cinzas, nestes tempos de crise mundial. Neste sonho, vejo Atenas, vejo Lisboa, vejo um espelho, o mundo. Febril. Utopia com código de barras.










terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Sou toda ouvidos





Sunny Road, de Emiliana Torrini.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Casa-ilha


A geografia dos afectos. Um homem do Sul amou uma mulher das Beiras e encantou-se pela própria Beira Alta. Não amou apenas a mulher; apaixonou-se pelas formas que lhe deram forma ao carácter. O enamoramento por todo um universo geográfico e afectivo. Quis conhecer as Beiras, como quis conhecer a mulher: com intensidade.


Quando começava a avistar o verde, no itinerário principal, ele [homem do mar] dizia: estamos a chegar a casa. O verde a desafiar-lhe a curiosidade. A vontade de conhecer o chão onde começara a criar subtis raízes.


Uma das mais belas telas que ele pintou tem aquilo que pode chamar-se de árvore aquática [a união de dois universos]. As escamas, a densidade. Agora pincela mais com as palavras. É agora o que já era antes de: um belíssimo contador de histórias [constata-se nos dois livros que escreveu e ilustrou]. Um ser que vive a vida pelo lado de dentro e que gosta de partilhar com os outros o que a a sensibilidade digeriu.


A mulher beirã um dia disse-lhe que se reescreve o mundo, com o talento que se encontra no âmago. A escrita é reescrita. Homens e mulheres, palimpsestos com batimentos cardíacos.


A casa-ilha, agora plantada no meio de uma vinha no Dão, é o símbolo da relação vivida entre esse homem marítimo e essa mulher bucólica.




sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Depois de anoitecer














Espelho, espelho. Mora em mim uma Céline...

Fui a Céline de «Antes de Amanhecer», nos anos 90, sem InterRail, com viagens interiores intermináveis. Sinto-me a Céline de «Antes do Anoitecer», à beira de uns quantos desencantos, com olhar condescendente, apesar. Em nove anos, as personagens 'adulteceram'. A lucidez estilhaçou algumas ilusões românticas, mas a conversa, sempre a conversa.

Sou emotiva, sismógrafo de carne e alma, como Céline. Um corpo não me basta. Lugares comuns não me bastam. O amor é um lugar, incomum, feito de estímulo intelectual e abraço. A conversa, sempre a conversa, a pedir a quebra das fronteiras de pele. Sedução. Inteligência. Sensibilidade.

Preciso de ideias a circular de cá para lá, de lá para cá. Tudo misturado, com o coração descompassado pelo meio. Sempre no meio, uma ponte em arritmia, dois corpos. São sempre dois, cheios de gente dentro. Polinização.

Emotiva me confesso. Mas, como me disse uma amiga, talvez seja também mais racional do que julgo. Com isto não sei se me revelo mais do que me oculto.

E depois de anoitecer, quanta claridade?



quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Corações ao alto

Imagem de Denis Olivier

«O Desejo é alto, é o que não se toca, queremos TOCAR.

O Prazer é baixo, é o que se TOCA

Uma definição rápida?

O Desejo é uma Prateleira do Céu.

Outra definição?

O Céu é uma prateleira de deus.

Outra ainda?

deus é uma prateleira do homem.

Uma correcção?

deus pode ser uma prateleira do homem.

uma indicação final?

O início.

a alma?

a indicação final.

Coreografias?

ocupar espaço antes dele nos ocupar.

O amor?

não respondo à Ciência, não sou capaz.

O amor?

a ciência a grande Ciência.»



Gonçalo M. Tavares, in Livro da Dança

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008



Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

Cecília Meireles

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Sou toda ouvidos




A Rumba dos Inadaptados, do Quinteto Tati, com o senhor trovador JP Simões...

«eu vivo da esperança da vaga mudança que nunca vai acontecer».

Ah, foi demitida por ter razão

Foto de Pedro Ferreira


«O Ministério da Cultura admite dar maior autonomia a alguns museus da rede pública se estes mostrarem capacidade de gestão e de atracção de financiamentos. "Não há limitações quanto a isso. É uma questão de proporem soluções", disse o ministro José António Pinto Ribeiro ao PÚBLICO. Mergulhados numa crise que se arrasta há bastante tempo, alguns dos principais museus públicos têm vindo a pedir uma maior autonomia de gestão que, dizem, não têm com o actual modelo. "Quem necessitar de maior autonomia tê-la-á, quem não necessitar não a terá", afirmou o ministro. "Podemos ter museus mais ou menos autónomos. O que não podemos é ter um museu com obras de arte e ninguém ir lá."

Foi por manifestar publicamente a necessidade de maior autonomia para os museus da rede pública que Dalila Rodrigues foi demitida da direcção do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). O facto de ter conseguido angariar apoio mecenático para a instituição e de ter feito aumentar o número de visitantes do MNAA (de 75 mil para 192 mil, em 2006) não abonou nem um bocadinho a favor da historiadora.
Agora o director do Museu do Chiado - Museu Nacional de Arte Contemporânea, Pedro Lapa, volta a defender o que também Dalila defendeu: "A autonomização dos museus nacionais é urgente para que estes possam cumprir a sua missão".

A sorte de Pedro Lapa não será idêntica à de Dalila Rodrigues [até porque o ministro mudou]. Mas é irónico ver como é tudo uma questão de gestão do silêncio. Dalila Rodrigues revelou inabilidade política: falou antes do tempo. Tiro-lhe o chapéu por ter seguido os ponteiros das suas convicções.




segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

A imaginação hospitalizada


«Quando uma criança não lê, a imaginação desaparece». É este o mote da campanha 'La Lecture en Cadeau', promovida pela Fundação para a Alfabetização do Canadá e idealizada pela agência Bleublancrouge design, com fotografias de Alain Desjean. Quando a Cinderela e o Peter Pan estão hospitalizados, somos nós todos que estamos a adoecer. O Capuchinho Vermelho ainda estará vivo? O vídeo pode ser visto aqui, no blog da editora Bruaá.




domingo, 7 de dezembro de 2008

Sou toda ouvidos




Há uns anitos, poucos, esta era a música das noites de fecho de edição do semanário onde trabalhei [vá, não era coisa de mulheres naquela altura do mês, não]. Agora, com um olhar distanciado, aquelas noites parecem-me mais tragicómicas, que trágicas. Rebekah del Rio, possuída pelo tema 'Llorando', no inquietante Mulholland Drive, de David Lynch. Sofrimento sim, mas com sentido estético.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Sou toda ouvidos





Fechar os olhos e embalar os sentidos, ouvindo o tema 'Raquel' (by Bau) do filme "Fala com Ela", de Pedro Almodóvar. O meu nome ganhou uma bela sonoridade.

The day the clown cried, de Sebastien Tabuteaud

«A terra é azul como uma laranja
Jamais um erro as palavras não mentem (...)», Paul Éluard
Há dias em que palavras cítricas nos devoram os lábios,
o sumo mudo a escorrer pelos cantos da boca,
o silêncio, azul latente.


quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Hei-de...

Negro Exterior, de Helena Almeida

Estou dentro de Dezembro e não queria. Queria-me lá à frente, a pisar o princípio da continuidade. Não gosto deste mês de finais. Não consigo vendar a memória com a euforia natalícia. Sinto-me luz enfiada num negro exterior.
Atravesso Dezembro expectante, com um peso no peito [o eco de vários natais, ais, ais, passados]. O lado emocional irrompe como granito que atravessa a carne. A mão estica-se até tocar o rosto de Janeiro.

Hei-de apaziguar-me com Dezembro.

sábado, 29 de novembro de 2008

Vida a preço de saldos

Crucificação, de Francis Bacon (1965)


Deve ser a isto que chamam de espírito natalício. Duzentas pessoas cheias de fé nos saldos. Carne a correr, quilos e quilos de carne a correr. O espezinhamento dos valores éticos. Uma morte oficial. Causa do óbito: consumismo.

[Os outros, os da multidão, já estão mortos, mas ainda não sabem].

O tempo devolve

Imagem de Berenika Berenika

Guarda a tua seiva para as raízes e os dedos para a colheita.
E depois detém-te a olhar o fruto, crescendo devagar,
nas tardes que demoram até ao verão. Que te seja redondo,
ao côncavo da mão, e nele reconheças o gosto e o perfume

mesmo antes de tocar-lhe; morde-o longamente com os olhos –
é neles que a polpa faz mais sede e a pele transpira
com o fulgor da cera. E não consintas vento, nem abelhas,
nem que nele repousem outros olhos, muito mais pequenos,
como os que trazem as aves voltando do Inverno. Deixa

o teu nome no pomar durante a noite – há mãos que nunca
dormem e a espera pode tornar os frutos ociosos.
Mas para mais ninguém este se avoluma, à tua boca prometido.
Embala-o então com a verdade antes de partires.
Cerca-o com os teus olhos. Mostra-lhe os dedos
que irás um dia confiar-lhe.

E assim o tempo devolvê-lo-á inteiro a seu tempo, vermelho
e tenro, doce, à espessura dos lábios.


Maria do Rosário Pedreira, in A Casa e o Cheiro dos Livros

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Dreams make my heart sing

Psst, psst, se algum ser muitooooooo sensível estiver com uma vontade irresistível de me colocar um sorriso hiperbólico no rosto, basta ir aqui e oferecer-me uma destas duas belezas: «You Make my Heart Sing» ou «Dreams are my reality». Serigrafias mais que perfeitas, de Ana Ventura.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Met/ade


Não te queiras pela metade
Cortada ao meio
a maçã célere oxida

[a polpa anoitece]

Sou toda ouvidos



A Fine Frenzy - You Picked Me

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

"Sigure" a alma



Música para lembrar que o Belo existe. Onde entra Sigur Rós é contar com a alma revirada do avesso.

domingo, 9 de novembro de 2008

Se isto não é amor

Imagem de Urszula Kluz-Knopek

Vidros cravados nas entranhas. Hoje a minha alma estilhaçou, como a memória do meu bisavô. A decrepitude instalou-se, indelével. Vemo-la e pedimos o silêncio. Não estávamos preparados para isso. Apesar dos 99 anos, não estávamos preparados. A rijeza e lucidez do meu bisavô habituaram-nos mal. Há semanas, começou a esmorecer. Os dias começaram a ser escuros, com os olhos teimosamente fechados para a vida. As noites em claro, com a voz em delírio a impor aos outros a insónia.


Hoje, deixou de caminhar. E o corpo descarnado tornou-se pesado demais para duas mulheres o conseguirem mover até ao quarto de banho, até ao quarto. Não cerrou os olhos durante a tarde. Abriu as portas à demência. «Tens o cabelo a arder», disse-me hoje ao almoço. Olhava para mim e via nos meus cabelos carreiros de lume. Apeteceu-me dizer-lhe que podia ter ideias em brasa dentro da cabeça e sonhos em combustão, mas que os cabelos não, não ardiam. Calei-me, a conter a tristeza.


Fui educada para o amor, não para a paixão. E o amor de que fui rodeada é fogo que arde e se vê, vê, vê. O que são os gestos da minha mãe, senão calor que acolhe e cuida? E as pacientes conversas do meu pai com o meu bisavô não serão fogueiras atentas? Há 20 anos que a minha mãe cuida do avô. Não serão muitas as mulheres a cuidar de avós. Perdidos os pais, restou o avô para cuidar. Família de filhos únicos. Somos poucos e dos poucos ainda menos.


A minha mãe é admirável [por tanta coisa que não quero expor aqui]. Ontem, fez 52 anos. Merecia mais de presente que um avô acamado.


Hoje, eu e a minha mãe tirámos forças de onde não as tínhamos para conseguirmos pegar no meu bisavô. Mas o peso que senti no coração foi bem maior que o esforço físico. Ver a minha mãe a sentir-se impotente para ajudar o meu bisavô [um rasgão aberto cá dentro]. A minha mãe sem saber se havia de cuidar dela ou dele. Para não o deixar cair, a minha mãe a esquecer a osteoporose, a minha mãe a ignorar que tem cancro e que ainda em Setembro terminou mais um ciclo de quimioterapia. Se isto não é amor, não sei o que será.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Mão aberta

Imagem de Pascal Renoux


«Prometo-te a palma da minha mão para a escrita.
Cerca-a de magnólias, cerca-me. Podes fechar a escrita
No interior da mão ou na boca dos livros
Podes esquecê-la ou libertá-la dos mil botões
Que ela sopra no interior dos homens.
Podes mandá-la àqueles que mais amas
Ou como pétalas e mensagens nas anilhas das aves
Aos teus próprios inimigos.
Podes desarmá-la para propagares as chamas.
Dou-te, como desde sempre, o poder
De escreveres na pele da minha mão
As promessas que te fiz. Sabes que existo
E que vou repetir-te todas as coisas outra vez.»

Daniel Faria

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Título de cauda longa

«Avô recusa entregar neto à filha por suspeita de que o menino de quatro anos estará em perigo junto da mãe»


Ó valha-me Santa Tecla, ké ké isto? O Público (ver pág 15, na edição de 04/11/2008) anda a ver se entra no Guiness Book, na categoria «O maior título do mundo», ai anda, anda. Chega uma pessoa estafada até menino e depois reza para que o menino não tenha quatro anos e meio (que sempre se poupam uns caracteres) e depois ainda tem de ganhar fôlego para chegar até à mãe. Ufa!

Eu faria melhor e juntava a família toda no título: Avô recusa entregar neto à filha por suspeita de que o menino de quatro anos estará em perigo junto da mãe e do padrasto

Mas também não ficava mal, não senhor, colocar: Avô recusa entregar neto à filha por suspeita de que o menino de quatro anos estará em perigo junto da mãe e do padrasto que são ambos toxicodepentes e traficantes de estupefacientes


Quem disse que no jornalismo era diferente?

«O mecanismo da "cunha", ou seja, o recurso a conhecimentos que se têm com pessoas dentro da profissão, "é o modo de acesso mais frequente" à carreira de jornalista» (Público, 04/11/2008)

Nãaaaaaaaao, isso é só má língua. É coisa de quem anda demasiado atento ao meio jornalístico (como os investigadores do ISCTE), coisa de quem não tem distracções na vida.

Para quem não quiser andar distraído em relação à profissão, pode ler a edição n.12/Primavera 2008 da Trajectos - Revista de Comunicação, Cultura e Educação. Na publicação são apresentados alguns dados relativos ao estudo sobre o perfil sociológico dos jornalistas portugueses, com coordenação do investigador José Rebelo, do ISCTE.
Destaco dois aspectos interligados, um quantitativo, outro qualitativo. Primeiro: em duas décadas, o número de jornalistas sextuplicou (de 1987 a 2006, os jornalistas com carteira profissional passaram de 1281 para 7402). Segundo: verificou-se uma feminização, rejuvenescimento e aumento do nível de escolaridade (60,3% tem formação superior). A precariedade no trabalho veio a reboque.

sábado, 1 de novembro de 2008

Sete palmos acima




Troco o cheiro doentio das velas a arder e os olhares de soslaio de quem faz do cemitério uma feira de vivas vaidades, pela nostalgia caseira. Os meus mortos estão todos cá dentro, bem dentrinho, fora do espaço rectangular de uma sepultura. Sem terra, mármore e flores de pétalas cabisbaixas. Sete palmos acima dos vermes. Sete palmos acima dos pingos de cera.


Recordo o sorriso da avó Nair, recordo-o de cada vez que me olho ao espelho a sorrir. Lembro o sabor da rabanadas, da torta com doce, dos biscoitos, que das mãos dela saiam. Depois dela partir, não mais me entusiasmaram as rabanadas. Lembro-me do avô António, da vida sofrida no amparo de duas muletas, do corpo possante que minguou, das brincadeiras do 'serubico tico tico', do carro de bois, lento, a percorrer a calçada de paralelos e o pinhal.

Do bisavô António recordo o bigode que picava, a meiguice e de como toda a criançada gostava dele. Lembro a bisavó Aldina e da partida inconsequente que lhe fiz, levando-a a cair no chão [desculpa,vó]. Lembro-me da pequenina e magra ti' Encarnação, da falta de dentes, do toque das mãos finas e com artroses, da longevidade [chegou aos 96 anos]. Recordo o tio Almeida, a perda de peso equivalente à perda de memória. Alzheimer a torná-lo sombra do homem que fora. Lembro o último dia em que o vi, dei-lhe a mão e foi tão bom ouvi-lo dizer o meu nome e recordar-se da minha profissão.

E recordo a mana gémea que nunca conheci senão dentro barriga da mamã. A partilha do aconchego uterino durante sete meses. Depois, o vazio. A separação prematura. Ela nem chegou a chorar. Por escassos minutos apenas, respirou este mundo. Eu fiquei cá para um dia lhe contar o que é isto de viver. [Sinto falta de te conhecer, mana; muitas vezes dei comigo com vontade de ter um espelho à minha frente, um espelho de carne e osso, sabes?]

Convoco "Ponette", de Jacques Doillon, esse filme que me arranca o coração e o coloca no lugar exacto do outro. Um dilacerante poema visual sobre a perda. O ensinamento de como a tristeza nos deve acordar para a vida.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Espantar os corvos do trigal




O post anterior pede-me luz, «Cinema Paraíso», música de Ennio Morricone, para contrariar, para espantar os corvos do trigal.

Suicida sobrevivente

Imagem de Omid N. h.

«Envilecimento,acanalhamento, não é mais do que o modo de vida que lhe resta a quem se negou a ser o que tem de ser. Este seu autêntico ser não morre por isso, senão que se converte em sombra acusadora, em fantasma, que lhe faz sentir constantemente a inferioridade da existência que leva em relação à que tinha de levar. O envilecido é o suicida sobrevivente», Ortega Y Gasset

Pum, pum. Duplo homicídio. Quatro crianças a escurecerem, a tiritarem, sob os cobertores. São suficientes, os cobertores, mas a noite tornou-se polar, sem que eles percebessem porquê. Pum, pum. A palidez da lua, a orfandade.


Diz-se crime passional e não se percebe. Não se percebe nunca. Passional. Espanto, da lembrança, o «Pasión» do Rodrigo Leão, que não é para aqui chamado. Procuro o dicionário, que é objecto de arrumar ideias. Confirmo que é relativo a paixão, susceptível de paixão.


E que é isso de paixão? Tenho tantas dúvidas, sou adulta. Queria ser criança para ter as dúvidas todas e pensar que os outros, os adultos, mas dariam, infalíveis. E que bastaria a firmeza na voz e um afago na cabeça para espantar as dúvidas, como se fossem corvos no trigal.


Concentro-me na paixão. A paixão pode atear fogo entre duas almas e levar um corpo a arredondar formas, perante o embevecimento do outro, corpo. A paixão pode parir quatro filhos. O amor os educará. Mas, a paixão também pode ser a arma de fogo que arranca o sangue das veias e o torna visível. Letalmente, visível. Pum, pum.


O dicionário dá-me pistas, não respostas firmes: «do Lat. passione, sofrimento. s. f., sentimento excessivo; amor ardente; afecto violento; entusiasmo; cólera; grande mágoa; vício dominador; alucinação; sofrimento intenso e prolongado; parcialidade; o martírio de Cristo ou dos Santos martirizados; parte do Evangelho em que se narra a Paixão de Cristo; colorido, expressão viva, em literatura».

Retenho a ideia de afecto violento. É frequente a união destas duas palavras; os gestos não são mais que a aliança reluzente deste enlace. Em nome da paixão, é-se imoral. É-se criminoso, mas sabe-se que se terá o afago, ainda que comedido, do meio social.


É pá, ela estava a pedi-las, caramba. Ainda mal se tinha divorciado e já tinha na cama outro, sob o tecto da casa que foi feita com o suor do trabalho do ex-marido. Ele passou-se, pá, que um homem não é de ferro, pá. Saiu de Espanha, irado, que nem cão raivoso. Entrou na madrugada, de arma em punho. E foi à queima-roupa. Pum, pum.

Quatro órfãos menores. O mais velho com dez anos, o mais pequeno de ano e meio. Quatro seres sem o colo quente da mãe. O pai já está morto, mas não se vê o cadáver, só a decomposição moral.

Beleza





Fui ali ao lado, a casa de uns amigos, e não resisti a trazer este pedaço de beleza para o meu cantinho. «Stay in my memory», de Bim.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Assombro

Imagem de Katia Chausheva

«O meu coração está dentro da minha cabeça». Avassaladora frase. Reconheço-me vassala da sabedoria de uma criança. A frase, dita por uma menina que não conheço e encontrada no arquivo do blog Nu Singular, resume-me em profundidade. Sinto-me desnudada [e pequenina]. E isso comove-me.

domingo, 26 de outubro de 2008

Outubro

Imagem de Ralph Gibson

«Os meus dedos percorriam os teus, falange, falanginha, falangeta, como se interrogasse as pétalas de um afirmativo malmequer. Para lá dos vidros, o som das nossas vozes apagava-se, marulhava nos nossos ouvidos como um oceano secreto contido numa concha. Outubro era um teclado, uma página aberta, um arbusto de veias».


Egito Gonçalves, in O Mapa do Tesouro

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Mata-borrão precisa-se


É por estas, por aquelas e por outras ironias que todos os meses choro os 155,22 euros que entrego ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social. Sniff, sniff. É triste ver que, em cinco meses, as minhas contribuições pagam a mais baratinha daquelas coisas que servem para escrever numa folha de papel e que, ao invés de serem Bic, são da marca Mont Blanc.
Começo a perceber que, se não pagar à Segurança Social, posso ter coisas que nem me passavam pela cabeça. Uma Mont Blanc, por exemplo.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Dicionário da sobrevivência

(Imagem retirada da net)


Kathmandu. Trânsito indigesto, buzinas a fazerem a vez de piscas. Rotundas, a desorientada poluição. Pobreza de mão estendida. Agorafobia. A vontade de recolher ao quarto de hotel, para dar descanso aos sentidos. O Budismo tinha de surgir assim: no meio de tanto metro quadrado de gente. A meditação é uma estratégia de sobrevivência.
Cremações públicas, máquinas fotográficas arregaladas. Corpos enrolados em lençóis ardem à beira do rio. O rio não chora os mortos, enxuga as emoções e segue em frente, sempre em frente. A dignidade do movimento contínuo das águas. As cinzas a misturarem-se com o lado abjecto dos hábitos humanos. Estações de tratamento de águas residuais inexistem por ali. Nada que dissuada a meninice de refrescar o corpo na imundície liquefeita.
Na rua, duas existências cruzam-se. Uma menina pedincha atenção, pede «a book, a book». Não quer rupia, quer conhecimento. Não quer sonho, nem a candura dos contos infantis. Ignora que haja cor-de-rosa (nem imagina que exista uma coisa apelidada de imprensa cor-de-rosa). A menina quer um dicionário de nepalês/inglês. Conhecer a língua inglesa é o sonho pragmático a que a menina aspira. Quer um dicionário, para melhor pedir. O turista faz-lhe a vontade, vai a um quiosque e alimenta-lhe a sobrevivência.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

E ficaram adormecidos para sempre

Imagem de Virgílio Ferreira


Resgato, das catacumbas do blog A Praia, um fragmento de um texto que a desconcertante Adília Lopes escreveu na revista do Público em 7 de Abril de 2002. Aposto que o Ice-Device vai achar piada a esta intertextualidade. Ó Ice, vem cá tirar o chapéu à Adília, vá.

«O Príncipe dá um beijo tão forte na boca da Bela Adormecida que lhe arranca um bocado da boca. A Bela Adormecida fica tão contente por ser acordada pelo Príncipe que lhe dá um abraço tão apertado que o estrangula e se estrangula .(...)»

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Veste-te

«(…) o que mais temiam nas mulheres era esse sentimento de antecipar as coisas. A indumentária, o penteado, mostravam quanto elas experimentavam a imaginação dos homens. Eram mais perigosas vestidas do que nuas». (Agustina Bessa-Luís, in «Jóia de Família»)


- Veste-te! – ordenou-lhe. Não suportava vê-la vulnerável. A nudez, física ou anímica, perturbava-o. Ele gostava de mulheres perigosas. Não queria familiaridade, não queria percorrer os sinais do corpo dela, como se fossem constelações. Não queria conhecê-la, saber que vidas, continentes, astros, ela trazia dentro de si. Queria-a contida, de espartilho. Mais observadora, que oradora. Queria-a perigosa, hábil na gestão de silêncio. O mistério era uma barricada desejável. Tinha de senti-la perversa, para ter prazer no saque. A mansidão na mulher causava-lhe repulsa.

Medida com pernas para andar

Imagem de Geoffroy Demarquet


Pensei que era uma notícia do suplemento Inimigo Público. Mas, não. Era mesmo do Público (mas será notícia para ganhar muito inimigo). O título da notícia: «Fisco ameaça 28 mil contribuintes com apreensão e venda de automóveis». Ficamos a saber que é um plano de emergência.


«A Direcção-geral dos Impostos (DGCI) prepara-se para enviar e-mails a cerca de 28 mil contribuintes com dívidas fiscais ameaçando-os de que, caso não regularizem a sua situação, os irá notificar para que entreguem os documentos das suas viaturas. A medida faz parte de um plano de emergência delineado em colaboração com a equipa política do Ministério das Finanças, de forma a garantir que será atingida a meta de 1500 milhões de euros de cobrança coerciva prevista para este ano, numa altura em que o abrandamento da economia constitui a principal dificuldade para o cumprimento do nível do défice deste ano e para a determinação dos objectivos da proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2009 que será apresentada hoje.

A estratégia de emergência, baptizada de Plano Operacional para a Realização do Objectivo da Cobrança Coerciva (POROCC), prevê um conjunto de mais de 60 medidas e nesta, em concreto, determina que, caso os contribuintes não regularizem a sua situação, e depois de apreendidos os veículos de que são proprietários, os mesmos sejam vendidos em leilão».


Este Governo é muito diplomático: não manda cobradores, manda e-mails (esperemos que sem vírus). Não se pode acusar o Governo de não ter sentido de humor, de não ser solidário com os taxistas ou de não se preocupar com os cidadãos.

Bem vistas as coisas, a DGCI está a zelar pelos próprios contribuintes. Sem esse prolongamento do corpo, que é o automóvel, as pessoas vão lembrar-se, à força, que têm pernas. E, também à força, tenderão a dar-lhes mais uso, a ganhar músculo. Ganha a saúde e o bolso. Ainda mais bem vistas as coisas, fazendo zoom, esta medida coerciva até parece saída do Ministério da Saúde.

Bulimia radical



A vulnerabilidade masculina filmada pelo olhar perspicaz de Stanley Kubrick, em «Lolita» (1962). A obsessão sexual a despir Humbert de roupa, pele, ossos. Um homem a pintar as unhas dos pés de uma criança, para alimentar o próprio desejo. A alma de joelhos. Bonjour tristesse.
A Agustina, que é uma lúcida radical, tinha de ser convocada para este post.
« A Lolita (...) só pode aparecer nesse campo Kitsch que é a família de ocasião em que a mãe é divorciada e o pai está em lugar incerto. Ela cresce para o sexo como se isso fosse um tipo de alimentação. Não distingue entre meter a mão nas calças de um rapaz, de a meter no açucareiro. É uma bulímica radical». (Agustina Bessa-Luís, in Jóia de Família)

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Papel principal




Des-lum-bra-men-to...é o que se sente ao ver o talento artístico de Elsa Mora (Cuba, 1971). O link: http://www.elsita.typepad.com/allaboutpapercutting/

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Quem nunca se sentiu galinha, levante a asa

Imagem de Jean-Claude Delalande

«O senhor padre diz que é preciso ter paciência. Terá uns trinta e tal anos, o senhor padre, podia ser meu filho. E fala de paciência como se me desse alguma novidade. Pudesse ele sentir, durante uma noite que fosse, o frio que me vai cá dentro, não se atrevia a chamar pecado àquilo que eu sinto. Pecado desprezar a vida que deus nos deu e só a ele pertence? Eu acredito no juízo final e passo muitas horas a magicar no que vou contar se a minha alma for a tribunal e me autorizarem a abrir a boca. É pecado ter maus pensamentos, eu sei. Mas alguém me deu razão e maneira de ter pensamentos bons? A vida não é um desterro para toda a gente. Há muito quem a goze sem o menor merecimento. E há muito quem goze porque pode gozar com a cara de quem goza menos. O senhor padre julga que eu estou zangada com o mundo. Não, isso não é verdade. Dou-me bem com as galinhas. Deito-me com elas e com elas saio da cama. Irmãos e irmãs voaram para longe, enquanto a capoeira foi ficando. Mal a porta se abre, é um corrupio e uma felicidade. Não são esquisitas no comer, não chegam a velhas porque acabam na panela. E lá vão dando ovos, quer faça chuva, quer faça sol... No tempo das geadas, trago sempre uma para dentro. Sento-a ao meu colo e é ela que me aquece e me faz companhia. Se deus não as tivesse criado tão cagonas e mijonas, mudava a capoeira para a minha cozinha. Não são estúpidas, as galinhas. São bichos presos à casa. Como eu. Não são donas de si, nem donas do seu viver. Como eu. Têm asas, porém não podem voar. Como eu...»

Este excerto foi retirado da belíssima dramaturgia escrita por Regina Guimarães para o espectáculo «Estufa Fria», com encenação de Igor Gandra, uma co-produção do Teatro de Ferro e da Comédias do Minho. A última parte do excerto ficou retida na minha memória. Há tantos bichos presos...a casas; relações afectivas frustradas, doentias ou apáticas; empregos castradores; bancos; doenças do corpo e da alma; televisores e outras dores. Tantos bichos com asas e sem migrações. Quem não se sentir galinha, num momento ou outro da vida, levante a asa.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Acções de fé


«Vejo que vai à missa. Bravo. Ser-se católico é como ser accionista da empresa mais antiga do mundo».


Patrícia Reis, in «No Silêncio de Deus»

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Arranha céu da boca

Imagem de Kostov Nikolay



Folheio palavras passadas e resgato um pedaço de escrita de Maio de 2000. Desengane-se quem pense que na origem esteve um grande amor. A banda sonora por aqueles dias era o álbum Fábula, de Maria João.



Tu és palavra,
não significas muito ou pouco.
Significas tudo ou nada,
ou futuro.

És olhar
sem o veres.
Olhos de verbo escuro,
de tinta permanente escrito.

Trocamos correspondência
sem papel, nem código postal:
tu lês-me,
eu deixo-me ler.

Trocamos:
agora, um girassol desenraizado´
a ler a inclinação de um sol.
Lumes no chão.

O teu rosto,
areia de madrugada.
Aqui e ali
gaivotas em asas de barba.

Corro à beira-olhos, teus.
Duas algas de alma
serpenteantes, nas escamas
brilhantes das marés - os meus.

Apanho a tua voz,
na geometria de uma rede
e guardo os sons
na espiral de um búzio.

Escavo um buraco
na aridez das areias dos dias.
Procuro a humidade frágil
do castelo de um arquitecto de afectos.




Significâncias XII


Esta tartaruga de madeira acompanha-me há anos. Um presente comprado certamente pelo interesse estético despertado na amiga-mana. Mas não deixo de olhar para a tartaruga e de ver nela um lembrete à ansiedade: devagar se vai ao longe.

Penumbra

Imagem de Helena Oganesyan



É na penumbra que os animais aprendem a olhar-se.
Os olhos seguindo o vento de dentro
a vertigem da esquina depois da pele.
Deixo o peito descalço para que me ceifem às cegas.
Na penumbra aprende-se o peso luminoso dos dias.

Catarina Nunes de Almeida

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Significâncias XI


Em finais do Verão de 2007, sou surpreendida com a chegada, ao correio, de um envelope oriundo da capital da Coreia do Sul. Descubro que um artigo meu publicado num jornal regional, de Viseu, foi citado na folha de sala e no flyer do Festival de Artes de Rua de Sowon, nas proximidades de Seul. Em causa está uma frase sobre o espectáculo Charanga, da companhia Circolando. Lá está a citação, as iniciais do meu nome profissional e a referência ao jornal onde trabalhei.
O amigo que me enviou a carta é técnico de luz, actor e encenador e, em trabalho, acompanhava a Circolando, no dito festival. Lá longe, ele lembrou-se do conceito de aldeia global: «É estranho, mas tive aquele sentimento de alegria parolo e provinciano de que Viseu estava ao meu lado do outro lado do mundo». Estamos todos perto, quando estamos dentro uns dos outros (como matrioskas) e sentimos a vida pelo avesso.

Significâncias X


À conversa, com os passos dirigidos à Imaginarium. Entrámos pela porta grande porque a pequenina é para gente com os sonhos intactos. Ele comprou um presente para uma menina e, sem que eu desconfiasse, também para uma senhora menina. Saímos e, então, passa-me para as mãos duas bolinhas, cada uma com uma letra: V e N. «É para assinalar a tua Vida Nova», terão sido as palavras deste amigo. Como duas bolinhas tão mínimas podem despertar emoções tão crescidinhas.

Significâncias IX


Uma caneca de metal para saciar a sede de conversa ou do mais que se quiser. Longe de metáforas, uma caneca pode ser uma lembrança do que não se viveu. É o caso. Esta foi oferecida por quem foi onde eu gostava de ter ido. Falhei o Andanças 2008, mas uma mão atenta lembrou-se de mim e trouxe-me o recipiente "ecológico", com marca Pé de Xumbo. Ficou registado. Para o ano tenho de ir a S. Pedro do Sul encher a caneca de emoções dançantes.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Significâncias VIII


O marcador de livros mais lindo do (meu) mundo. As palavras e os olhos de quem lê precisam de ser mimados. Este mimo de papel foi-me oferecido pela pessoa que eu conheço com mais ânsia de mundo, de saber, de criar. Inquietude em estado criativo. Um contador de estórias que entrou na escrita de mansinho, que é o modo certo de entrar nas coisas.

domingo, 21 de setembro de 2008

Significância VII


Esta foi uma grande surpresa depositada nas escadas de minha casa, já a noite ia na metade mais escura. Um telefonema teimoso, a vontade de saber onde eu morava. O desejo de me entregar um presente. Já estava de pijama, no aconchego dos lençóis. Disse que não, que não ia à rua àquela hora. Disse-lhe qual o meu endereço. Ele deixou o fóssil e partiu. Eu sai da cama, desci as escadas e recolhi aquele pedaço de história que conta estórias. A noite aclarou, com um sorriso.

Significâncias VI


Este bombom, de roupagem calorosa, veio parar às minhas mãos num dia de chuva, há uns bons anos. Aliás, só o tenho por causa da chuva. Havia um problema (que era a chuva) e afigurei-me como a solução (dotada de guarda-chuva). À saída do campus universitário, um desconhecido, tão estudante como eu, pediu-me "boleia" até ao automóvel. Chapéu que abriga uma cabeça, abriga duas...e lá fomos os dois, por instantes, em sintonia de passos. Ao chegarmos ao carro, ele tira da algibeira o bombom e dá-mo como forma de agradecimento. Não fixei o rosto dele. Ficou o gesto, arrumado num pequeno baú de madeira.

Significâncias V


Não, este chapéu de chocolate não serve para me abrigar dos lacrimejos destas nuvens dominicais. Este guarda-chuva foi-me oferecido por um amigo, no dia em que ele soube que eu tinha ganho um prémio de destaque nacional, em 2004. Talvez ele intuisse que o prémio iria fazer alguém chorar de inveja e que eu precisaria de um abrigo...lol

Significâncias IV


A nostalgia bateu-me no ombro e fiquei com vontade de ter um cubo mágico. Aquele com que me entretera na infância perdeu-se no vão da escada etária. Não havia meio de encontrar, à venda, o cubo Rubik's, até que uma amiga me surpreendeu com a oferta de um. Sinto-me frustrada; quando era miúda parecia mais simples alinhar as cores do cubo.

Significâncias III


Um desenho do meu bisavô quando este tinha 94 anos. O desenho não se perdeu na gaveta do esquecimento. E o meu bisavô ainda cá anda, a desafiar a vida. Tem 99 anos, lucidez, gosto pela vida e é teimoso que se farta. Começa a dizer que, quando morrer, não vai deixar "soidades". "Os velhos quando morrem não deixam soidades, os novos sim", soltou ele, há dias, com uma tranquilidade desconcertante.

Significâncias II


Este trevo de quatro folhas mantenho-o guardado no meio de palavras. Foi-me oferecido por uma amiga, antes de ir a uma entrevista de emprego. Sorte a minha, em ter amigos assim, doces e atentos...