domingo, 29 de março de 2009

Colérica ignorância


A Linguística é para
aqui chamada, ó se é. Para quem ainda tivesse dúvidas, eis, em Moçambique, a constatação de que a ignorância mata.

Nem sempre as boas intenções são claras, por mais vermelha que seja a cruz. Por detrás do cloro, a cólera de quem ignora.

sábado, 28 de março de 2009

Metida num 31






Acabei de me meter num 31. E por cá estarei durante 12 meses, até soprar de novo as velas.

sexta-feira, 27 de março de 2009

La vie ne c'est pas une feuille blanche















«Ferdinand: - Porque estás triste?

Marianne: - Porque me falas com palavras e eu olho-te com sentimentos.

Ferdinand: - É impossível ter uma conversa contigo. Nunca tens ideias, só sentimentos.

Marianne: - Não é verdade. Os sentimentos contêm ideias.

Ferdinand: - Vamos tentar ter uma conversa séria. Diz-me do que gostas, o que queres, e eu farei o mesmo. Começa tu.

Marianne: - Flores, animais, o azul do céu, o som da música. Não sei. Tudo. E tu?

Ferdinand: - Ambição, esperança, o movimento das coisas, acidentes.

Marianne: -Que mais?

Ferdinand: - Não sei. Tudo.

Marianne: - Vês? Eu tinha razão há cinco anos. Não nos entendemos. »



Ele vive a literatura, vive na literatura, vive para a literatura. Ela quer viver a vida. Rastilho aceso, a união. Ele, azul, calmorte que arde. Ela, vermelho, lava em escorrência. Tão idênticos, tão distantes. Ela quer parar de fingir que está num livro de Júlio Verne e regressar, com ele, ao romance policial, com carros, armas e clubes nocturnos. O mar não lhe chega, a ela. A vida não é preto e branco, nem apenas espuma. É azul e vermelho, que escurecem. «Pedro, o Louco», de Jean-Luc Godard, é um filme assombroso e assombrado pela fenda [fecunda e mortífera] entre M e F, masculino e feminino, Marianne [Anna Karina] e Ferdinand [Jean-Paul Belmondo].

Matéria e antimatéria. O vermelho sobre o rosto azul. E a linha do destino que era mesmo curta, como o pavio. Explosão. Bumm!



quarta-feira, 25 de março de 2009

Sombra de dúvida




A carícia solar
aviva a sombra que nos habita.
O caminho _ trevas em incandescência.


[Olho para estas fotos, tiradas hoje à tarde, e lembro-me de uma certa conversa sobre matéria e antimatéria, das consequências violentas da união das duas, do aniquilamento mútuo. E não posso deixar de sorrir...a senhora dona Física conhece tão bem a alma humana, que até parece a Agustina Bessa-Luís]

domingo, 22 de março de 2009

Olhar com comprimento, altura, profundidade e milagre

Imagem de William Charpe


«Theodor fora ensinado pelo pai, Thomas Busbeck, que a inteligência era um índice do movimento do olhar. Se fizermos o cálculo, dizia Thomas Busbeck, da velocidade dos olhos dirigindo-se às coisas para as perceber, velocidade média durante um ano, teremos o valor da inteligência dessa pessoa, e tal bastará para adquirirmos uma ideia bastante precisa acerca da produção intelectual desse indivíduo. O mais breve encontro entre dois seres que não se conheçam bastará - se existir uma observação atenta do olhar do outro - para se captar a aptidão intelectual de cada um, mesmo que um e outro não troquem palavra. O que cada um diz não é suficiente: pode ser apenas boa memória - costumava afirmar o velho Thomas Busbeck - , se queres escolher um colaborador fecha os ouvidos e está atento aos olhos dele, à forma como eles se mexem: no fundo, ao modo como eles se atiram às coisas, como vêem um objecto e o rodeiam, como entram nele e depois saem ou ficam. O trajecto dos olhos no mundo dá o trajecto da inteligência
[Gonçalo M. Tavares, in Jerusalém]




«- Quando alguém procura - respondeu Siddhartha - pode acontecer que os seus olhos vejam apenas a coisa que ele procura, que não permitam que ele a encontre por que ele pensa sempre e apenas naquilo que procura, porque ele tem um objectivo, porque está possuído por este objectivo. Procurar significa ter um objectivo. Mas encontrar significa ser livre, manter-se aberto, não ter objectivos. Tu, Venerável, és talvez um homem à procura, pois, perseguindo o teu objectivo, muitas vezes não vês aquilo que está perante os teus olhos».

[Herman Hesse, in Siddhartha]


P.S. O título foi inspirado num poema de Gonçalo M. Tavares.

sexta-feira, 20 de março de 2009

A primavera de volta a casa














A alta hospitalar. A chegada a casa. O que os olhos da minha mãe ansiavam ver. Como gosto de a ver no meio da rebentação primaveril.



As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.

[Daniel Faria]




domingo, 15 de março de 2009

Folhas secas

Imagem de Joan Kocak



Cada vez dou mais valor às pessoas que dão significado à minha vida. Cada vez dou mais valor a quem tenho e ao que tenho dentro de mim. E a quem traz dentro das suas vidas a minha família. Gosto-me cheia de emoções fortes. Às vezes despojada de palavras [como tem acontecido nestes últimos tempos]. E a valorizar, cada vez mais, o silêncio...e as doces interrupções de silêncio, 'impostas' pelo carinho dos amigos.

Tem havido dor, muita dor. Ver a tristeza, inquietação muda, no olhar da minha mãe. Ver a minha mãe a olhar para um corpo que, pela terceira vez, foi aberto no mesmo sítio. A doença como uma estranha que não pediu licença para entrar numa casa de carne e osso. A doença a esconder-se atrás de cortinas. Até um dia se comportar como elefante em loja de porcelanas. E surpreender. O estilhaço. O rasgão. Os agrafos. A costura.

A dor. A dor está-me a servir para colocar na devida ordem certas miudezas. Impõe-se uma imagem, ainda desfocada. Não vislumbro todos os contornos. Mas, sinto-me a abrir uma gaiola cheia de folhas secas. A sensação de estar na posse de uma gaiola de folhas secas, sabendo que a prisioneira afinal sou eu.

Quero deixar a gaiola vazia, de porta aberta. O tombo das folhas. Húmus.

Há dias, dei por mim a queimar, na lareira, todas as flores secas que encontrei cá em casa. Cada vez me parece mais incompreensível oferecer a alguém arranjos de flores secas. Gosto de ver o desabrochar das flores que a minha mãe tem semeado no jardim. Gosto das flores que, com o frio, adormecem, para voltar a despertar na primavera.

Flores secas estão ao nível do quadro do menino da lágrima. Pior só mesmo baptizar alguém com o nome de Maria das Dores.

domingo, 8 de março de 2009

Pausa



Ontem abriu-se uma brecha de beleza, num quotidiano que tem girado em torno do hospital. Em boa companhia, assisti ao concerto de Rodrigo Leão & Cinema Ensemble. Uma pausa. A beleza a entrar-me pelos ouvidos e pelos olhos. No final do concerto, dois olhos atentos às minhas palavras inquietas.


A neblina acompanhou-me na viagem de regresso a casa.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Fotossíntese

Imagem de Filipoiu Marius


Almofada de húmus, o leito.
O pólen vermelho na ronda do peito.

Queria dizer-te: fotossinto-te.


segunda-feira, 2 de março de 2009

Noite branca

Imagem de Anne-Julie Aubry


Encher de silêncio os olhos
e balouçar os sonhos
na raiz da penumbra