segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Abraçar um sorriso

Ilustração de Gabriel Pacheco

Um poema de José Tolentino Mendonça. Porque hoje uma amiga regressou. Porque ela nunca partiu. Porque os amigos nunca partem, por maior que seja a distância geográfica. Porque foi muito bom voltar a abraçar um sorriso que é uma mesa posta em redor de uma lareira.


Uma canção debaixo do dilúvio

Ocupam-nos com a sua feroz solidão

e conhecemos o seu cheiro, o consumo difuso,
o visível de ambos os lados

Diante deles não é
possível dissimular
a ironia ou a piedade

Esperam por nós entre diversas combinações

à superfície e para além disso

Um amigo é uma machine à habiter

o vento pré-histórico das montanhas geladas

Talvez pertençam a outros mundos

pois nos abraçamos sempre como sobreviventes

Com eles podemos arrancar uma canção

debaixo do dilúvio
 
José Tolentino Mendonça, in Estação Central