quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A luta






Arrepanho-me toda para dentro -
querer ter apenas interior.
Fui sendo dentro e fora
e agora um amontoado de palavras-dor.

Ganhei infância e morte lesma:
um quarto de brincadeira séria.
O medo de querer ser eu e eu e Eu

Um corpo-jazigo,
o mármore mole da carne.

A luta arguta de mim contra mim.


domingo, 13 de fevereiro de 2011

Dias de tempestade

A Tempestade, de John William Waterhouse

Faz hoje uma semana que o meu avô paterno morreu, no hospital. Faz amanhã uma semana que o meu avô foi a enterrar. Nem eu, nem a minha mãe fomos ao funeral. Havia que cuidar dos vivos.

Enquanto decorriam as cerimónias fúnebres, a minha mãe estava a fazer quimioterapia e eu a acompanhá-la. Aí está um novo ciclo de tratamento. Até agora, a minha mãe já fez 44 sessões de quimioterapia. Quarenta e quatro. Entre as 9h00 e as 18h30 estivemos no hospital de dia. Durante aquelas horas foi entrando dentro de mim o olhar desesperado de uma outra doente oncológica. Cancro do pulmão. Enquanto fazia quimio, a senhora, de cabelo curto, recém-nascido, falou das noites mal dormidas, do sofrimento. Mas não precisava de dizer nada. Os olhos mostravam o que as palavras nunca teriam coragem de expressar: medo da morte, cansaço de lutar. Olhos que choram para dentro.

Este novo ciclo de quimio, está a ser o mais duro até agora. Cansaço extremo, vómitos, diarreia, mal-estar, cólicas, sonolência. Ontem tivemos de ir para a urgência. Enquanto a minha mãe estava a soro, na maca, procurei temporariamente descanso numa cadeira. Calhou sentar-me à porta do consultório de psiquiatria. Sai um homem de uma consulta e senta-se ao meu lado. Mete conversa. Pergunta-me se estou para a consulta de psiquiatria. Digo-lhe que não, que sou acompanhante de uma doente. Ele explica-me que se fosse doente psiquiátrica que mais valia bater à porta para falar com a doutora, que ela está de saída da urgência. Depois, começou a contar que sofria de depressão há dez anos. Nas mãos um saco plástico cheiinho de embalagens de medicamentos. Disse-me que percebia que «o copinho de leite» tivesse feito o que fez. Só com o desenrolar da conversa é que percebi que «o copinho de leite» a que se referia era o Renato Seabra.

«Sempre fui um homem calmo. Estou casado há 25 anos e por isso estás a ver que tenho um ambiente familiar estável. E, no outro dia, dei comigo com as mãos no pescoço da minha mulher, a esganá-la. E eu não me lembro de nada, devo ter tido algum lapso», desabafou ele comigo, uma desconhecida. O acto de violência não ficou pela mulher. Mais tarde, violentou a filha, no rosto. Sem encontrar justificação, nem ter memória do episódio. Ficou estupefacto quando viu sangue espalhado pelo chão e hematomas no rosto da filha.

O desespero nem sempre sobe ao olhar. Os olhos deste homem, de 49 anos, eram baços, vazios. A angústia colou-se toda às palavras. Aquele homem sabe que já se perdeu da vida e tem medo dele próprio, daí ter procurado ajuda médica. Não é a morte dele que o inquieta, é a possibilidade de, fora de si, tirar a vida ao Outro. Lucidamente, confessou-me: «Eu preferia ser internado a um dia ir parar a uma prisão».