sábado, 29 de novembro de 2008

Vida a preço de saldos

Crucificação, de Francis Bacon (1965)


Deve ser a isto que chamam de espírito natalício. Duzentas pessoas cheias de fé nos saldos. Carne a correr, quilos e quilos de carne a correr. O espezinhamento dos valores éticos. Uma morte oficial. Causa do óbito: consumismo.

[Os outros, os da multidão, já estão mortos, mas ainda não sabem].

O tempo devolve

Imagem de Berenika Berenika

Guarda a tua seiva para as raízes e os dedos para a colheita.
E depois detém-te a olhar o fruto, crescendo devagar,
nas tardes que demoram até ao verão. Que te seja redondo,
ao côncavo da mão, e nele reconheças o gosto e o perfume

mesmo antes de tocar-lhe; morde-o longamente com os olhos –
é neles que a polpa faz mais sede e a pele transpira
com o fulgor da cera. E não consintas vento, nem abelhas,
nem que nele repousem outros olhos, muito mais pequenos,
como os que trazem as aves voltando do Inverno. Deixa

o teu nome no pomar durante a noite – há mãos que nunca
dormem e a espera pode tornar os frutos ociosos.
Mas para mais ninguém este se avoluma, à tua boca prometido.
Embala-o então com a verdade antes de partires.
Cerca-o com os teus olhos. Mostra-lhe os dedos
que irás um dia confiar-lhe.

E assim o tempo devolvê-lo-á inteiro a seu tempo, vermelho
e tenro, doce, à espessura dos lábios.


Maria do Rosário Pedreira, in A Casa e o Cheiro dos Livros

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Dreams make my heart sing

Psst, psst, se algum ser muitooooooo sensível estiver com uma vontade irresistível de me colocar um sorriso hiperbólico no rosto, basta ir aqui e oferecer-me uma destas duas belezas: «You Make my Heart Sing» ou «Dreams are my reality». Serigrafias mais que perfeitas, de Ana Ventura.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Met/ade


Não te queiras pela metade
Cortada ao meio
a maçã célere oxida

[a polpa anoitece]

Sou toda ouvidos



A Fine Frenzy - You Picked Me

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

"Sigure" a alma



Música para lembrar que o Belo existe. Onde entra Sigur Rós é contar com a alma revirada do avesso.

domingo, 9 de novembro de 2008

Se isto não é amor

Imagem de Urszula Kluz-Knopek

Vidros cravados nas entranhas. Hoje a minha alma estilhaçou, como a memória do meu bisavô. A decrepitude instalou-se, indelével. Vemo-la e pedimos o silêncio. Não estávamos preparados para isso. Apesar dos 99 anos, não estávamos preparados. A rijeza e lucidez do meu bisavô habituaram-nos mal. Há semanas, começou a esmorecer. Os dias começaram a ser escuros, com os olhos teimosamente fechados para a vida. As noites em claro, com a voz em delírio a impor aos outros a insónia.


Hoje, deixou de caminhar. E o corpo descarnado tornou-se pesado demais para duas mulheres o conseguirem mover até ao quarto de banho, até ao quarto. Não cerrou os olhos durante a tarde. Abriu as portas à demência. «Tens o cabelo a arder», disse-me hoje ao almoço. Olhava para mim e via nos meus cabelos carreiros de lume. Apeteceu-me dizer-lhe que podia ter ideias em brasa dentro da cabeça e sonhos em combustão, mas que os cabelos não, não ardiam. Calei-me, a conter a tristeza.


Fui educada para o amor, não para a paixão. E o amor de que fui rodeada é fogo que arde e se vê, vê, vê. O que são os gestos da minha mãe, senão calor que acolhe e cuida? E as pacientes conversas do meu pai com o meu bisavô não serão fogueiras atentas? Há 20 anos que a minha mãe cuida do avô. Não serão muitas as mulheres a cuidar de avós. Perdidos os pais, restou o avô para cuidar. Família de filhos únicos. Somos poucos e dos poucos ainda menos.


A minha mãe é admirável [por tanta coisa que não quero expor aqui]. Ontem, fez 52 anos. Merecia mais de presente que um avô acamado.


Hoje, eu e a minha mãe tirámos forças de onde não as tínhamos para conseguirmos pegar no meu bisavô. Mas o peso que senti no coração foi bem maior que o esforço físico. Ver a minha mãe a sentir-se impotente para ajudar o meu bisavô [um rasgão aberto cá dentro]. A minha mãe sem saber se havia de cuidar dela ou dele. Para não o deixar cair, a minha mãe a esquecer a osteoporose, a minha mãe a ignorar que tem cancro e que ainda em Setembro terminou mais um ciclo de quimioterapia. Se isto não é amor, não sei o que será.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Mão aberta

Imagem de Pascal Renoux


«Prometo-te a palma da minha mão para a escrita.
Cerca-a de magnólias, cerca-me. Podes fechar a escrita
No interior da mão ou na boca dos livros
Podes esquecê-la ou libertá-la dos mil botões
Que ela sopra no interior dos homens.
Podes mandá-la àqueles que mais amas
Ou como pétalas e mensagens nas anilhas das aves
Aos teus próprios inimigos.
Podes desarmá-la para propagares as chamas.
Dou-te, como desde sempre, o poder
De escreveres na pele da minha mão
As promessas que te fiz. Sabes que existo
E que vou repetir-te todas as coisas outra vez.»

Daniel Faria

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Título de cauda longa

«Avô recusa entregar neto à filha por suspeita de que o menino de quatro anos estará em perigo junto da mãe»


Ó valha-me Santa Tecla, ké ké isto? O Público (ver pág 15, na edição de 04/11/2008) anda a ver se entra no Guiness Book, na categoria «O maior título do mundo», ai anda, anda. Chega uma pessoa estafada até menino e depois reza para que o menino não tenha quatro anos e meio (que sempre se poupam uns caracteres) e depois ainda tem de ganhar fôlego para chegar até à mãe. Ufa!

Eu faria melhor e juntava a família toda no título: Avô recusa entregar neto à filha por suspeita de que o menino de quatro anos estará em perigo junto da mãe e do padrasto

Mas também não ficava mal, não senhor, colocar: Avô recusa entregar neto à filha por suspeita de que o menino de quatro anos estará em perigo junto da mãe e do padrasto que são ambos toxicodepentes e traficantes de estupefacientes


Quem disse que no jornalismo era diferente?

«O mecanismo da "cunha", ou seja, o recurso a conhecimentos que se têm com pessoas dentro da profissão, "é o modo de acesso mais frequente" à carreira de jornalista» (Público, 04/11/2008)

Nãaaaaaaaao, isso é só má língua. É coisa de quem anda demasiado atento ao meio jornalístico (como os investigadores do ISCTE), coisa de quem não tem distracções na vida.

Para quem não quiser andar distraído em relação à profissão, pode ler a edição n.12/Primavera 2008 da Trajectos - Revista de Comunicação, Cultura e Educação. Na publicação são apresentados alguns dados relativos ao estudo sobre o perfil sociológico dos jornalistas portugueses, com coordenação do investigador José Rebelo, do ISCTE.
Destaco dois aspectos interligados, um quantitativo, outro qualitativo. Primeiro: em duas décadas, o número de jornalistas sextuplicou (de 1987 a 2006, os jornalistas com carteira profissional passaram de 1281 para 7402). Segundo: verificou-se uma feminização, rejuvenescimento e aumento do nível de escolaridade (60,3% tem formação superior). A precariedade no trabalho veio a reboque.

sábado, 1 de novembro de 2008

Sete palmos acima




Troco o cheiro doentio das velas a arder e os olhares de soslaio de quem faz do cemitério uma feira de vivas vaidades, pela nostalgia caseira. Os meus mortos estão todos cá dentro, bem dentrinho, fora do espaço rectangular de uma sepultura. Sem terra, mármore e flores de pétalas cabisbaixas. Sete palmos acima dos vermes. Sete palmos acima dos pingos de cera.


Recordo o sorriso da avó Nair, recordo-o de cada vez que me olho ao espelho a sorrir. Lembro o sabor da rabanadas, da torta com doce, dos biscoitos, que das mãos dela saiam. Depois dela partir, não mais me entusiasmaram as rabanadas. Lembro-me do avô António, da vida sofrida no amparo de duas muletas, do corpo possante que minguou, das brincadeiras do 'serubico tico tico', do carro de bois, lento, a percorrer a calçada de paralelos e o pinhal.

Do bisavô António recordo o bigode que picava, a meiguice e de como toda a criançada gostava dele. Lembro a bisavó Aldina e da partida inconsequente que lhe fiz, levando-a a cair no chão [desculpa,vó]. Lembro-me da pequenina e magra ti' Encarnação, da falta de dentes, do toque das mãos finas e com artroses, da longevidade [chegou aos 96 anos]. Recordo o tio Almeida, a perda de peso equivalente à perda de memória. Alzheimer a torná-lo sombra do homem que fora. Lembro o último dia em que o vi, dei-lhe a mão e foi tão bom ouvi-lo dizer o meu nome e recordar-se da minha profissão.

E recordo a mana gémea que nunca conheci senão dentro barriga da mamã. A partilha do aconchego uterino durante sete meses. Depois, o vazio. A separação prematura. Ela nem chegou a chorar. Por escassos minutos apenas, respirou este mundo. Eu fiquei cá para um dia lhe contar o que é isto de viver. [Sinto falta de te conhecer, mana; muitas vezes dei comigo com vontade de ter um espelho à minha frente, um espelho de carne e osso, sabes?]

Convoco "Ponette", de Jacques Doillon, esse filme que me arranca o coração e o coloca no lugar exacto do outro. Um dilacerante poema visual sobre a perda. O ensinamento de como a tristeza nos deve acordar para a vida.