domingo, 9 de novembro de 2008

Se isto não é amor

Imagem de Urszula Kluz-Knopek

Vidros cravados nas entranhas. Hoje a minha alma estilhaçou, como a memória do meu bisavô. A decrepitude instalou-se, indelével. Vemo-la e pedimos o silêncio. Não estávamos preparados para isso. Apesar dos 99 anos, não estávamos preparados. A rijeza e lucidez do meu bisavô habituaram-nos mal. Há semanas, começou a esmorecer. Os dias começaram a ser escuros, com os olhos teimosamente fechados para a vida. As noites em claro, com a voz em delírio a impor aos outros a insónia.


Hoje, deixou de caminhar. E o corpo descarnado tornou-se pesado demais para duas mulheres o conseguirem mover até ao quarto de banho, até ao quarto. Não cerrou os olhos durante a tarde. Abriu as portas à demência. «Tens o cabelo a arder», disse-me hoje ao almoço. Olhava para mim e via nos meus cabelos carreiros de lume. Apeteceu-me dizer-lhe que podia ter ideias em brasa dentro da cabeça e sonhos em combustão, mas que os cabelos não, não ardiam. Calei-me, a conter a tristeza.


Fui educada para o amor, não para a paixão. E o amor de que fui rodeada é fogo que arde e se vê, vê, vê. O que são os gestos da minha mãe, senão calor que acolhe e cuida? E as pacientes conversas do meu pai com o meu bisavô não serão fogueiras atentas? Há 20 anos que a minha mãe cuida do avô. Não serão muitas as mulheres a cuidar de avós. Perdidos os pais, restou o avô para cuidar. Família de filhos únicos. Somos poucos e dos poucos ainda menos.


A minha mãe é admirável [por tanta coisa que não quero expor aqui]. Ontem, fez 52 anos. Merecia mais de presente que um avô acamado.


Hoje, eu e a minha mãe tirámos forças de onde não as tínhamos para conseguirmos pegar no meu bisavô. Mas o peso que senti no coração foi bem maior que o esforço físico. Ver a minha mãe a sentir-se impotente para ajudar o meu bisavô [um rasgão aberto cá dentro]. A minha mãe sem saber se havia de cuidar dela ou dele. Para não o deixar cair, a minha mãe a esquecer a osteoporose, a minha mãe a ignorar que tem cancro e que ainda em Setembro terminou mais um ciclo de quimioterapia. Se isto não é amor, não sei o que será.

4 comentários:

Unknown disse...

resta-me desejar alguma paz por esses lados.

adija disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Alexandre disse...

Se isto não é amor em forma de letras e frases, não sei o que será.

Anónimo disse...

É.
Amar é viver sobressaltado(a).