segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Da (im)preparação para a morte

Nestes últimos dias, muito se tem falado em mortes desumanas. Em idosos que são encontrados, sem vida, em casa, semanas, meses, depois de a morte os resgatar. Em idosos que morrem em hospitais.

Mas desumano não é morrer num hospital. Desumano é morrer sem amor. O amor não surge espontaneamente, sem semente, no aproximar da morte. O amor é um projecto de vida. Ou cativamos os outros  - e o seu amor - ao longo da vida ou  não se espere que ele nasça nas horas que antecedem a agonia.

E não se ama menos por deixar que um dos nossos morra numa cama de hospital. Haverá quem abandone os seus à vida, e à morte. Há quem arrede a velhice, colocando-a em lares. Há quem se arrede da velhice, entregando os seus à solidão. Há quem não queira saber dos seus velhos da mesma forma que não quiseram saber deles enquanto novos. Há quem não queira saber dos seus velhos porque nunca existiram laços profundos, para além daqueles que o sangue impõe. Há quem não queira saber dos seus velhos porque estes nunca foram flor que se cheire. Há quem não saiba amar. Há quem não saiba tornar-se amado. A velhice só torna a falta de amor mais dramática.

A minha experiência fala-me de amor. Na minha família não se deixou morrer ninguém ao desamparo. E eu nasci rodeada de avós e bisavós. O que significa que já perdi muitos dos meus. Alguns muito precocemente: a minha avó materna, a minha mãe. Muitos dos meus morreram em ambiente hospitalar. Se morressem em casa não teria sido melhor, nem menos doloroso. A morte nunca é fácil, nem nunca se está preparado. Não há manuais que nos valham. Não há soluções ideais para a morte porque a vida não é perfeita. E por isso não o é também no capítulo final.

Há pouco menos de cinco anos, a minha família levou com um murro no estômago chamado cancro colorrectal T4.  Um tumor T4 é uma morte anunciada. A expectativa médica era que a minha mãe vivesse apenas um ano, dois no máximo. Após o diagnóstico, viveu quatro anos e meio, cinco operações, 40 e muitas sessões de quimioterapia, uma ostomia, duas nefrostomias. 

 A minha mãe superou as expectativas porque era uma mulher forte, porque era amada porque amava a vida. Tenho a certeza disso. E porque teve um médico, uma equipa médica, que nunca desistiu dela. Por isso, naquela manhã em que se viu ao espelho e teve consciência da cor amarela com que estava, sinal de metástases hepáticas, quis ir para o hospital. Ela sabia que aquela era a última viagem que faria, com vida. Foi pelo pé dela, o meu pai conduziu-a. Ele também sabia que o amor da vida dele não sairia mais do hospital.

A minha mãe sabia que no hospital seria tratada da melhor forma possível, pela equipa do doutor Leitão. E foi. Foi acarinhada por todos e teve, tivemos, a sorte de ela poder ficar num quarto individual. A nutricionista foi visitá-la para lhe perguntar o que queria comer. E comeu, de facto, aquilo que lhe apetecia. Até o arroz de feijão. Foi mimada, tanto quanto alguém podia ser. E não teve dores. De certa forma, despediu-se de nós, enquanto ainda tinha capacidades para isso. Depois, o depois, não há como evitá-lo. A dor de ver quem se ama em agonia. Não há como fugir dela. Morre-se sempre só porque há uma altura em que a comunicação deixa de ser possível. Mesmo que continuemos a falar com quem estamos prestes a ver partir.

Nos últimos dias de vida da minha mãe, os nossos passos em direcção ao hospital deixaram de ser entusiastas e passámos a ter passos arrastados, como se o peso no peito colasse os pés ao chão. Víamos no olhar dos enfermeiros a tristeza, a tristeza de verem partir uma mulher que lutou tanto e com a qual foram criando amizade, ao longo dos anos. A minha mãe sentia-se em casa, ali, no Hospital S. Teotónio. Ela chegou a dizê-lo. Por isso quis morrer ali, sem dores, sem sofrimento físico. Quis também preservar-nos de a vermos  morrer com dores. Sei-o.

Todos sabíamos que ela ia morrer. Tentei preparar-me. Cheguei a comprar, por recomendação de um amigo médico,  o livro «Acolher a morte», de Elizabeth Kübler-Ross. Hesitei em trazer o livro da Fnac, como se o livro me queimasse as mãos, como se o simples facto de comprar aquele livro  fosse um sinal de que eu tinha assumido a derrota. Comecei a lê-lo só pouco tempo antes da morte da minha mãe. Desisti. Nunca estamos preparados para aceitar a morte de quem se ama. Nunca. Por muito que a morte seja expectável, por muito que se sinta que se disse e mostrou o quanto se ama o outro.

Aliviou saber quais os recados que a minha mãe deixou com uma grande amiga. E saber que mesmo sem recado, nós teríamos feito exactamente o que a minha mãe queria: ser velada em casa; ser enterrada na campa da mãe dela. E saber que ela quis que nós soubéssemos que foi muito feliz com os filhos que teve e tem;  e com o marido que teve e tem.

O amor não desaparece com a morte.


domingo, 29 de janeiro de 2012

Sou toda ouvidos

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Respira acção

Desenho de Miguel Horta

Na lisura da mão nocturna
O coração fóssil ganhou vegetais gestos - 
'Fotossinto-te', murmurou ao mundo.


segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Sou toda ouvidos


domingo, 22 de janeiro de 2012

Desfolhar

Ilustração de Gabriel Pacheco

Queria desfolhar-me
do alfabeto de luz e sombra.
Ser a primeira madrugada do mundo.