«O título do livro pensara nele enquanto olhava fixamente para a montra de uma pastelaria cheia de porquinhos de maçapão. Há já algum tempo que eu andava interessada na questão do canibalismo simbólico.Na altura, eram os bolos de casamento, encimados pelos seus noivos de açúcar, que muito em particular me fascinavam», Margaret Atwood
Os postais de Boas Festas da família Keil Amaral são sempre uma surpresa. Partilho aqui o talento bem-humorado da dupla Lira/Pitum. Um postal inspirado na crise económica.
No canto superior esquerdo da imagem, estão desenhadas as figuras de Lira e Pitum. Dizem eles:
-Olha! É a expulsão do Paraíso! - Outra vez? Coitados!
No canto inferior esquerdo está escrito: «Saúde, muita amizade e...que não seja esse o vosso caso. São os votos para 2009 da Lira e do Pitum». E são também os meus.
Era uma vez uma menina de cinco anos que passava tanto, mas tanto tempo no local de trabalho da mãe que, quando se referia aos fins-de-semana, não dizia 'vem aí o fim-de-semana', mas sim 'vou estar de folga'.
Era uma vez uma menina de cinco anos que passava tanto, mas tanto tempo no local de trabalho da mãe que gostava de brincar a fazer de conta que passava recibos.
Era uma vez uma menina de cinco que passava tanto, mas tanto tempo no local de trabalho da mãe que, um dia, ao ir com a madrinha aos serviços administrativos de uma autarquia, deixou todos os funcionários presos a uma voz pequenina. «Não quero ser adulta», soltou ela. «Ai é? Então diz lá porquê», indagou a madrinha. «Porque os adultos passam a vida a trabalhar, a trabalhar, a trabalhar...e a resolver problemas».
«Era um sonho atroz logo desde o princípio. Marchar nua, a passo militar, no meio de outras mulheres, era para Tereza a imagem-tipo do horror. Quando morava com a mãe, estava proibida de se fechar à chave na casa de banho. Para a mãe, era uma maneira de lhe dizer:o teu corpo é igual a todos os outros corpos; não tens direito ao pudor; não tens nada que esconder uma coisa que existe de forma idêntica em milhões de exemplares. No universo da mãe, os corpos eram todos iguais e marchavam a passo uns atrás dos outros num interminável desfile. Desde a infância que a nudez era para Tereza a marca da uniformidade obrigatória do campo de concentração; a marca da humilhação.
Ainda havia outra coisa horrível logo no começo do sonho: as mulheres tinham todas que cantar! Com os corpos todos iguais uns aos outros, todos igualmente desvalorizados como simples mecanismos sonoros e sem alma, as mulheres ainda se regozijavam com isso! Era a rejubilante solidariedade das desalmadas. Sentiam-se felizes por estarem libertas do fardo da alma, dessa ilusão da diferença, desse orgulho ridículo, e por serem todas iguais».
Imagem de Berenika Berenika Tempo de desembrulhar o que somos, de nos semearmos em campos de carne e osso. Dar, darmo-nos. Atear fogueiras, o crepitar de conversas. Os gestos a criarem raízes. Resgatar o que de nós cheira a infância. A melancolia polvilhada de canela e frutos secos. No virar da esquina do mês, a transição para a continuidade. Uma folha em branco para distendermos o corpo, as vontades, os desejos, os sonhos. Embalar o olhar, respirar como um bebé e dar à luz uma inabalável confiança na vida.
Um poema retirado de um lugar que visito com regularidade sequiosa: a poesia de Daniel Faria. Um post que parece 'dialogar' bem com o post da Carla de Elsinore.
(Dizem que ontem)
As mãos eram de granito Os olhares eram de granito De granito era a própria pedra
(Trouxeram pedra para o peito do menino)
De granito eram as palavras Que se trocavam ao preço das moedas
As moedas eram de granito
Aos balcões de granito se comprava Aos balcões de granito se vendia
Os negócios eram de granito
Os sonhos
(E o granito crescia no menino)
Junto à muralha uma mulher de mão ao vento Parecia acenar a cada barco E chamava um nome de menino
Atenas, Dezembro de 2008: Imagem de Nikolas Giakoumidis/AP Photo
Atenas, Dezembro 2008: Imagem de Louisa Gouliamaki/AFP/Getty Images
Paris em tumulto. Matthew e os gémeos Theo e Isabelle, do filme «Os Sonhadores», de Bernardo Bertolucci, podiam andar por estes dias em Atenas...com as suas contradições em revolução, com a utopia a rondar as pálpebras, com a inocência a arder. A cinza. Uma casa, com cortinas, com vista para o Maio de 1968.
Na noite passada, sonhei com um homem que estava sentado [intacto, na aparência], em ambiente fabril. Talvez resignado. Estátua com respiração. Levanta-se. A revelação. O homem ardia por dentro. Desfaz-se em cinza, no momento de ascensão.
Neste sonho cabemos todos. Todos podemos ser o homem em cinzas, nestes tempos de crise mundial. Neste sonho, vejo Atenas, vejo Lisboa, vejo um espelho, o mundo. Febril. Utopia com código de barras.
A geografia dos afectos. Um homem do Sul amou uma mulher das Beiras e encantou-se pela própria Beira Alta. Não amou apenas a mulher; apaixonou-se pelas formas que lhe deram forma ao carácter. O enamoramento por todo um universo geográfico e afectivo. Quis conhecer as Beiras, como quis conhecer a mulher: com intensidade.
Quando começava a avistar o verde, no itinerário principal, ele [homem do mar] dizia: estamos a chegar a casa. O verde a desafiar-lhe a curiosidade. A vontade de conhecer o chão onde começara a criar subtis raízes.
Uma das mais belas telas que ele pintou tem aquilo que pode chamar-se de árvore aquática [a união de dois universos]. As escamas, a densidade. Agora pincela mais com as palavras. É agora o que já era antes de: um belíssimo contador de histórias [constata-se nos dois livros que escreveu e ilustrou]. Um ser que vive a vida pelo lado de dentro e que gosta de partilhar com os outros o que a a sensibilidade digeriu.
A mulher beirã um dia disse-lhe que se reescreve o mundo, com o talento que se encontra no âmago. A escrita é reescrita. Homens e mulheres, palimpsestos com batimentos cardíacos.
A casa-ilha, agora plantada no meio de uma vinha no Dão, é o símbolo da relação vivida entre esse homem marítimo e essa mulher bucólica.
Fui a Céline de «Antes de Amanhecer», nos anos 90, sem InterRail, com viagens interiores intermináveis. Sinto-me a Céline de «Antes do Anoitecer», à beira de uns quantos desencantos, com olhar condescendente, apesar. Em nove anos, as personagens 'adulteceram'. A lucidez estilhaçou algumas ilusões românticas, mas a conversa, sempre a conversa.
Sou emotiva, sismógrafo de carne e alma, como Céline. Um corpo não me basta. Lugares comuns não me bastam. O amor é um lugar, incomum, feito de estímulo intelectual e abraço. A conversa, sempre a conversa, a pedir a quebra das fronteiras de pele. Sedução. Inteligência. Sensibilidade.
Preciso de ideias a circular de cá para lá, de lá para cá. Tudo misturado, com o coração descompassado pelo meio. Sempre no meio, uma ponte em arritmia, dois corpos. São sempre dois, cheios de gente dentro. Polinização.
Emotiva me confesso. Mas, como me disse uma amiga, talvez seja também mais racional do que julgo. Com isto não sei se me revelo mais do que me oculto.
«O Ministério da Cultura admite dar maior autonomia a alguns museus da rede pública se estes mostrarem capacidade de gestão e de atracção de financiamentos. "Não há limitações quanto a isso. É uma questão de proporem soluções", disse o ministro José António Pinto Ribeiro ao PÚBLICO. Mergulhados numa crise que se arrasta há bastante tempo, alguns dos principais museus públicos têm vindo a pedir uma maior autonomia de gestão que, dizem, não têm com o actual modelo. "Quem necessitar de maior autonomia tê-la-á, quem não necessitar não a terá", afirmou o ministro. "Podemos ter museus mais ou menos autónomos. O que não podemos é ter um museu com obras de arte e ninguém ir lá."
Foi por manifestar publicamente a necessidade de maior autonomia para os museus da rede pública que Dalila Rodrigues foi demitida da direcção do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). O facto de ter conseguido angariar apoio mecenático para a instituição e de ter feito aumentar o número de visitantes do MNAA (de 75 mil para 192 mil, em 2006) não abonou nem um bocadinho a favor da historiadora.
Agora o director do Museu do Chiado - Museu Nacional de Arte Contemporânea, Pedro Lapa, volta a defender o que também Dalila defendeu: "A autonomização dos museus nacionais é urgente para que estes possam cumprir a sua missão".
A sorte de Pedro Lapa não será idêntica à de Dalila Rodrigues [até porque o ministro mudou]. Mas é irónico ver como é tudo uma questão de gestão do silêncio. Dalila Rodrigues revelou inabilidade política: falou antes do tempo. Tiro-lhe o chapéu por ter seguido os ponteiros das suas convicções.
«Quando uma criança não lê, a imaginação desaparece». É este o mote da campanha 'La Lecture en Cadeau', promovida pela Fundação para a Alfabetização do Canadá e idealizada pela agência Bleublancrouge design, com fotografias de Alain Desjean. Quando a Cinderela e o Peter Pan estão hospitalizados, somos nós todos que estamos a adoecer. O Capuchinho Vermelho ainda estará vivo? O vídeo pode ser visto aqui, no blog da editora Bruaá.
Há uns anitos, poucos, esta era a música das noites de fecho de edição do semanário onde trabalhei [vá, não era coisa de mulheres naquela altura do mês, não]. Agora, com um olhar distanciado, aquelas noites parecem-me mais tragicómicas, que trágicas. Rebekah del Rio, possuída pelo tema 'Llorando', no inquietante Mulholland Drive, de David Lynch. Sofrimento sim, mas com sentido estético.
Fechar os olhos e embalar os sentidos, ouvindo o tema 'Raquel' (by Bau) do filme "Fala com Ela", de Pedro Almodóvar. O meu nome ganhou uma bela sonoridade.
The day the clown cried, de Sebastien Tabuteaud
«A terra é azul como uma laranja
Jamais um erro as palavras não mentem (...)», Paul Éluard
Há dias em que palavras cítricas nos devoram os lábios,
Estou dentro de Dezembro e não queria. Queria-me lá à frente, a pisar o princípio da continuidade. Não gosto deste mês de finais. Não consigo vendar a memória com a euforia natalícia. Sinto-me luz enfiada num negro exterior.
Atravesso Dezembro expectante, com um peso no peito [o eco de vários natais, ais, ais, passados]. O lado emocional irrompe como granito que atravessa a carne. A mão estica-se até tocar o rosto de Janeiro.