quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Suicida sobrevivente

Imagem de Omid N. h.

«Envilecimento,acanalhamento, não é mais do que o modo de vida que lhe resta a quem se negou a ser o que tem de ser. Este seu autêntico ser não morre por isso, senão que se converte em sombra acusadora, em fantasma, que lhe faz sentir constantemente a inferioridade da existência que leva em relação à que tinha de levar. O envilecido é o suicida sobrevivente», Ortega Y Gasset

Pum, pum. Duplo homicídio. Quatro crianças a escurecerem, a tiritarem, sob os cobertores. São suficientes, os cobertores, mas a noite tornou-se polar, sem que eles percebessem porquê. Pum, pum. A palidez da lua, a orfandade.


Diz-se crime passional e não se percebe. Não se percebe nunca. Passional. Espanto, da lembrança, o «Pasión» do Rodrigo Leão, que não é para aqui chamado. Procuro o dicionário, que é objecto de arrumar ideias. Confirmo que é relativo a paixão, susceptível de paixão.


E que é isso de paixão? Tenho tantas dúvidas, sou adulta. Queria ser criança para ter as dúvidas todas e pensar que os outros, os adultos, mas dariam, infalíveis. E que bastaria a firmeza na voz e um afago na cabeça para espantar as dúvidas, como se fossem corvos no trigal.


Concentro-me na paixão. A paixão pode atear fogo entre duas almas e levar um corpo a arredondar formas, perante o embevecimento do outro, corpo. A paixão pode parir quatro filhos. O amor os educará. Mas, a paixão também pode ser a arma de fogo que arranca o sangue das veias e o torna visível. Letalmente, visível. Pum, pum.


O dicionário dá-me pistas, não respostas firmes: «do Lat. passione, sofrimento. s. f., sentimento excessivo; amor ardente; afecto violento; entusiasmo; cólera; grande mágoa; vício dominador; alucinação; sofrimento intenso e prolongado; parcialidade; o martírio de Cristo ou dos Santos martirizados; parte do Evangelho em que se narra a Paixão de Cristo; colorido, expressão viva, em literatura».

Retenho a ideia de afecto violento. É frequente a união destas duas palavras; os gestos não são mais que a aliança reluzente deste enlace. Em nome da paixão, é-se imoral. É-se criminoso, mas sabe-se que se terá o afago, ainda que comedido, do meio social.


É pá, ela estava a pedi-las, caramba. Ainda mal se tinha divorciado e já tinha na cama outro, sob o tecto da casa que foi feita com o suor do trabalho do ex-marido. Ele passou-se, pá, que um homem não é de ferro, pá. Saiu de Espanha, irado, que nem cão raivoso. Entrou na madrugada, de arma em punho. E foi à queima-roupa. Pum, pum.

Quatro órfãos menores. O mais velho com dez anos, o mais pequeno de ano e meio. Quatro seres sem o colo quente da mãe. O pai já está morto, mas não se vê o cadáver, só a decomposição moral.

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