quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Quem nunca se sentiu galinha, levante a asa

Imagem de Jean-Claude Delalande

«O senhor padre diz que é preciso ter paciência. Terá uns trinta e tal anos, o senhor padre, podia ser meu filho. E fala de paciência como se me desse alguma novidade. Pudesse ele sentir, durante uma noite que fosse, o frio que me vai cá dentro, não se atrevia a chamar pecado àquilo que eu sinto. Pecado desprezar a vida que deus nos deu e só a ele pertence? Eu acredito no juízo final e passo muitas horas a magicar no que vou contar se a minha alma for a tribunal e me autorizarem a abrir a boca. É pecado ter maus pensamentos, eu sei. Mas alguém me deu razão e maneira de ter pensamentos bons? A vida não é um desterro para toda a gente. Há muito quem a goze sem o menor merecimento. E há muito quem goze porque pode gozar com a cara de quem goza menos. O senhor padre julga que eu estou zangada com o mundo. Não, isso não é verdade. Dou-me bem com as galinhas. Deito-me com elas e com elas saio da cama. Irmãos e irmãs voaram para longe, enquanto a capoeira foi ficando. Mal a porta se abre, é um corrupio e uma felicidade. Não são esquisitas no comer, não chegam a velhas porque acabam na panela. E lá vão dando ovos, quer faça chuva, quer faça sol... No tempo das geadas, trago sempre uma para dentro. Sento-a ao meu colo e é ela que me aquece e me faz companhia. Se deus não as tivesse criado tão cagonas e mijonas, mudava a capoeira para a minha cozinha. Não são estúpidas, as galinhas. São bichos presos à casa. Como eu. Não são donas de si, nem donas do seu viver. Como eu. Têm asas, porém não podem voar. Como eu...»

Este excerto foi retirado da belíssima dramaturgia escrita por Regina Guimarães para o espectáculo «Estufa Fria», com encenação de Igor Gandra, uma co-produção do Teatro de Ferro e da Comédias do Minho. A última parte do excerto ficou retida na minha memória. Há tantos bichos presos...a casas; relações afectivas frustradas, doentias ou apáticas; empregos castradores; bancos; doenças do corpo e da alma; televisores e outras dores. Tantos bichos com asas e sem migrações. Quem não se sentir galinha, num momento ou outro da vida, levante a asa.

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