sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Matrioskas

Imagem de Mateusz Piestrak


O silêncio morde-me os lábios.
O vermelho a tingir a garganta.
Engulo o que nunca te voltarei a dizer [terei dito alguma vez?].

As palavras caem-me todas no estômago.
Enroscam-se umas nas outras,
Matrioskas do meu afecto.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Acelerar: pública virtude

Imagem de Marie-Claude Strausz




Diálogo entre moi-même e um agente da Polícia de Segurança Pública, que integra a Escola Segura:



- Há senhoras que são um bocado azelhas a conduzir. - diz ele.

- Tal como há homens que são maus condutores. - retorque ela.

- Mas já se encontram boas condutoras. Há uns tempos, na auto-estrada em direcção a Lisboa, ia eu a 205 Km/hora, quando vejo uma senhora a ultrapassar-me e pensei: sim senhora, bela condutora, tiro-lhe o chapéu. E reduzi ligeiramente a velocidade para a deixar ultrapassar-me. Ela também ia numa boa máquina. - remata ele
.


Apraz-me ver que, para um elemento da PSP, bom condutor é aquele que ultrapassa [e bem] os limites legais de velocidade. Agora tudo faz sentido.

Sou toda ouvidos

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Yes, we can (be unemployed)

Imagem de Omid N.h.



72 mil despedimentos em apenas um dia nos Estados Unidos e Europa

A Caterpillar e a Pfizer lideraram ontem a vaga de demissões, dando sinais evidentes da crise profunda que domina a economia mundial



Não houve nenhum crash da bolsa, não estamos em 1929 e nem sequer foi uma quinta-feira, mas o dia de ontem bem poderia ficar conhecido como a segunda-feira negra. Em menos de 12 horas, sete empresas anunciaram cerca de 72.500 despedimentos na Europa e nos Estados Unidos, agudizando o panorama de crise económica mundial.

Num único dia apenas, a onda de despedimentos atingiu cerca de 15 por cento do número de empregos que se perderam nos EUA em todo o mês passado (cerca de meio milhão). Sinal de que o desemprego não vai parar de acelerar e que a crise atingiu em força as empresas, inclusive as maiores do mundo.

A Caterpillar, construtora norte-americana de bulldozers e escavadores, liderou a vaga de despedimentos, anunciando o corte de 20 mil postos de trabalho, depois de ter apresentado receitas mais baixas nos últimos três meses de 2008 e de temer ainda maior pressão sobre os lucros deste ano. Logo a seguir ficou a farmacêutica Pfizer que, ao comprar a concorrente Wyeth, deixou para trás um rasto de custos humanos: 19 mil trabalhadores das duas empresas vão perder os empregos.

[Público, 27/01/2009]



Os números impressionam, mas são apenas números. A estatística não tem carne, não tem pele, fome, empréstimos bancários ou ataques de pânico. Os despedimentos nas grandes empresas são apenas a face mais gigantesca, mais mediática, da crise económica. São números que remetem as pessoas para o anonimato. Mas, em nosso redor, os casos de desemprego multiplicam-se. Há histórias a tocarem-nos no ombro e lá onde dói [quando se sente]. Há olhares sem horizontes, há braços desocupados, há bolsos a esvaziarem-se. E insinua-se o perigo do tédio.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Sou toda ouvidos

Descobri aqui os The Deer Tracks, banda sueca que se estreia com o álbum Aurora. Gosto do título, Aurora. Soa a promessa, a sonhos intactos, a folha em branco, expectante. E gosto do tema Slow Collision.



domingo, 25 de janeiro de 2009

Marcas do vazio - the end



[As duas imagens deveriam estar alinhadas lado a lado, para se perceber que os três estão no mesmo espaço físico]


«(...) Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos...
(...)Não choremos, não adiemos, não desejemos...Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto da nossa Imperfeição...»


[Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego]
P.S. Esta sequência de posts começou aqui.

Marcas do vazio









"No luto real, é a «prova da realidade» que me mostra que o objecto amado deixou de existir. No luto de amor, o objecto não está nem morto, nem afastado. Sou eu que decido que a sua imagem deve morrer (e poderei mesmo ocultar-lhe essa morte). Enquanto este estranho luto durar, terei de suportar duas dores contrárias: sofrer a presença do outro (continuando, apesar disso, a ferir-me) e entristecer-me com a sua morte (pelo menos do que eu amava)."



[Roland Barthes, in Fragmentos de um discurso amoroso]

Marcas do vazio




«O sexo é o consolo de uma pessoa quando lhe falta o amor.»


[Gabriel García Márquez, in Memória das minhas putas tristes]

Marcas do vazio




«As grandes melancolias, as tristezas cheias de tédio, não podem existir senão com um ambiente de conforto e de sóbrio luxo.»


[Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego]

Marcas do vazio


«E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparámos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser.»


[Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego]

Marcas do vazio


«E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos...Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa alguma. Não tinhamos vida que a Morte precisasse para matar. Éramos tão ténues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo de uma palmeira.»


[Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego]

sábado, 24 de janeiro de 2009

Marcas do vazio




«(...) a nossa época está obcecada pelo desejo de esquecimento e é para realizar esse desejo que se abandona ao demónio da velocidade; acelera o passo porque quer fazer-nos compreender que já não aspira a ser lembrada; que se sente cansada de si própria; farta de si própria; que quer soprar a chamazinha trémula da memória.»


[Milan Kundera, in A Lentidão]

Marcas do vazio




«Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar»


[Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego]

Marcas do vazio


«Raciocinar a minha tristeza? Para quê se o raciocínio é um esforço? E quem é triste não pode esforçar-se. Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.»


[Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego]

Marcas do vazio


«Todos os brinquedos da nossa infância milenária jazem por terra com as tripas mecânicas de fora, e depois do prazer com que os desventrámos, olhamos, aterrados, por não termos mais brinquedos para desventrar... As horas do nosso abandono ressoam no céu deserto onde só o silêncio responde ao nosso pobre pavor. (...) O último sol do ocaso prolonga a nossa sombra de estátuas finais que meditam.»


[Vergílio Ferreira, in Carta ao Futuro]

Marcas do vazio


Campanha Sisley: Living Dallas - a lone star diary


Campanha Sisley: Living Dallas - a lone star diary






"Hi Barbie!
Hi Ken!
Do you wanna go for a ride?
Sure Ken!
Jump In...I'm a barbie girl, in the barbie world
Life in plastic, it's fantastic!
you can brush my hair, undress me everywhere
Imagination, life is your creation
Come on Barbie, let's go party!
I'm a barbie girl, in the barbie world
Life in plastic, it's fantastic!
you can brush my hair, undress me everywhere
Imagination, life is your creation
I'm a blond bimbo girl, in the fantasy world
Dress me up, make it tight, I'm your dolly
You're my doll, rock'n'roll, feel the glamour in pink,
kiss me here, touch me there, hanky panky...
You can touch, you can play, if you say: "I'm always yours (...)"


[Aqua, Barbie Girl, 1997]

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Marcas do vazio


«Por mais que por mim me embrenhe todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia»


[Fernando Pessoa, in Livro do Desassossego]

Marcas do vazio


Pobre Moça


Moça, pobre moça, abandonada e só,
Enclausurada, feita carcereira da tua própria alma;
Fechaste-te num cárcere que tu própria ergueste.
E mal podes crer na impressão que me faz ver-te chorar.

Moça, pobre moça, rasga-me esses véus,
Rebenta com essas grades, dissolve-te hoje mesmo;
Condenaste-te a uma prisão que tu própria ergueste.

[Jim Morrison, Uma Oração Americana e Outros Escritos]

Marcas do vazio


«Toda a vida que se cumpre esgota a comunicabilidade onde quer que se anuncie. Assim, a hora da sua verdade não é uma hora de comício, mas de solidão final. A máscara que nos defende não tanto conta os outros como contra nós próprios (porque se nós a montamos não é tanto para que os outros nos identifiquem por ela, como para que nós acabemos de por ela nos identificarmos), essa máscara que é de comédia, ainda quando de tragédia, é bem vã nos instantes derradeiros de qualquer situação, porque então os olhos que nos vêem não nos vêem de fora mas de dentro. Ah, estar só é terrível.»
[Vergílio Ferreira, in Carta ao Futuro]







Marcas do vazio


Campanha publicitária da marca Jigsaw - Autumn Winter 98

A publicidade, esse agente e espelho do corpo social, é capaz de nos persuadir a utilizar os produtos como meios de auto-expressão. Nós não compramos produtos, adquirimos rótulos, emoções, estilos de vida, símbolos.
A propósito de um trabalho para a cadeira de Publicidade, no terceiro ano do curso de Comunicação Social, em 1999, fiz dois dossiers sobre o universo publicitário. Da recolha de anúncios, em suporte papel, foi possível constatar uma tendência dos anos 90 - características como as da incomunicabilidade, solidão e angústia eram utilizadas para vender produtos ligados ao universo da moda. Até surgiu a tendência heroin chic, cujo ícone foi Kate Moss. A modelo apareceu, em campanha da Calvin Klein, com um ar escanzelado e olheiras profundas, porque era cool ter ar de drogada.
O aspecto da incomunicabilidade, de ausência de partilha afectiva, mereceu-me atenção pelo espelho sociológico contido na publicidade. Durante algum tempo, irei partilhar aqui alguns dos anúncios reveladores desse 'mal de vivre' de quem, na abundância, se sente vazio. O retrato de uma sociedade que se enche, mas não se preenche.


quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Lavar o mundo

Imagem de Bogac Erguvenc


Hoje chove muito, muito,
dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado contempla a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor
uma carta à mulher que vive com ele
e cozinha para ele e lava a roupa dele e faz
amor com ele
e parece sua sombra
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher
entra em casa pela janela e não pela porta
por uma porta entra-se em muitos sítios
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo
mas não no mundo
nem numa mulher, nem na alma
quer dizer, nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim
como hoje, que chove muito
e me custa escrever a palavra amor
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa
e somente a alma sabe onde os dois se encontram
e quando,
e como
mas o que pode a alma explicar?
por isso meu vizinho tem tormentas na boca
palavras que naufragam
palavras que não sabem que há sol porque nascem
e morrem na mesma noite em que amou
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá
como o silêncio que há entre duas rosas
ou como eu,
que escrevo palavras para regressar
ao meu vizinho que contempla a chuva
e à chuva
ao meu coração desterrado



Juan Gelman

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Bambu

A Sininho desafiou-me a escrever sobre o que é isso de ir à luta. Para além do que escrevi no blog dela, acrescentaria mais isto: ir à luta é continuar a acreditar no azul, mesmo quando estamos na fossa. Ir à luta é refilar, barafustar, explodir, indignarmo-nos com a vida...e, por catarse, deixar que a dor amanse. E então, seguir. Sempre. Bambu.



Dias perfeitos hão-de vir, límpidos e de riso quente.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Puta que pariu o cancro
(com o devido respeito pelas profissionais do sexo)

Inspiro-te, expiro-nos

Imagem de Heavycoat

"Os pulmões são bonitos - nunca percebi porque é que as pessoas não os escolheram como lugar simbólico dos sentimentos, em vez da banalidade do coração. Os pulmões abrem e fecham, como se estivessem debaixo de água, esponjas do fundo do mar. O coração é apenas uma bomba. Como se pode preferir uma coisa que «bate», que não bate coisíssima nenhuma, a uma coisa que respira?"


Miguel Esteves Cardoso, in A Vida Inteira

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

De olho no riso

Dois sketches d' Os Contemporâneos que ontem me fizeram cócegas na barriga.



domingo, 18 de janeiro de 2009

A Falha

Imagem de Sabina Dimitriu


Tobias protegia-a dela mesma, mas não do mundo. Só agora ela se apercebia disso. A dor que ele lhe infligia, defendia-a dos seus próprios desejos destrutivos. Ele destruía, destruía-se. Espeta-dor. Ela asssistia, triste. Espectador. Mas os papéis estavam definidos. Ela era a boa menina, ele o vilão.

Tobias ardia-se todo; a pele incandescente, os olhos em cinza. As palavras a escapulirem-se, lebres com febres de feno. Para ela continuar a ser uma boa menina, ele era sombra, transgressão, silêncio. O rosto dele foi-se cobrindo de barba: jardim em sufoco, a erva daninha. O cabelo, hera distendida pelo canteiro. Ela quis ser jardineira. Ele não quis ser toxicodependente. Falharam os dois.

Quanto mais ralhas, mais gostas de mim

 
[A forma como as crianças nos dizem que sabem que gostamos delas]


Os oito anos do Dinis soltam uma daquelas birras em que a paciência foge a sete pés. Na boca aloja-se um papagaio. Começa a repetir tudo o que digo, de forma insolente. Com veemência na voz dou-lhe uma descompostura e digo-lhe que se continuar com actos de má educação que leva uma palmada. Ele persiste na macaquice de imitação e aperto-lhe, devagar, as bochechas, como se lhe fosse dar uma bofetada.


- Tu és má!



- Não sou má, ponho-te é na linha.



- Não pões não, não me bates com força.




Resultado: acabou por me fazer soltar o riso.
[Lá perdi a compostura de general]


sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

As manias da mulher nham nham

Respondendo ao desafio da Violet, faço uma lista com cinco manias muito minhas. Lanço o mesmo desafio à Ana, ao Manhoso, ao Ice Device, ao Ivan, ao Paulo, à Sininho, ao José Veloso e à Menina Limão.
  • 1) Flocos de cereais ao pequeno-almoço e café ao almoço. Dia que comece sem cereais não é um bom dia. Acordo sempre esfomeada e não há nada que me saiba melhor que os habituais cereais: Kellogg's Special K, All Bran Flakes ou Clusters. E almoço que não seja seguido de um café não tem o mesmo sabor. Além de que se passar um dia sem tomar um café, fico com uma bela dor de cabeça.
  • 2) Lavar as mãos. Ando constantemente com as mãos na àgua. Sempre fui assim. Faço qualquer coisa e tenho logo, de seguida, de lavar as mãos. Quando visito alguém no hospital, devo ser das poucas pessoas que cumprem sempre a regra das mãos lavaditas.
  • 3) Bruxismo. A palavra pode conduzir a interpretações esotéricas ou fálicas, mas não é mais do que a acção inconsciente de apertar ou ranger os dentes durante o sono. Para além de desgastar os dentes, o bruxismo pode provocar dores de cabeça. O meu dentista tratou de me tirar um molde da dentição e fazer-me uma goteira, para dar descanso aos dentes. E fiquei a saber que ele próprio também sofria de bruxismo. Segundo me disse, o número de "bruxistas" está a aumentar.
  • 4) Não saio de casa sem colocar na mala uma garrafa de água, saquetas de bolachas ou barras de cereais. Faço isto desde os tempos da universidade. Aliás, virou a minha imagem de marca. Uma colega de curso dizia que, mais tarde, quando se lembrasse de mim, iria associar-me a uma garrafa de água e bolachinhas. Como me alimento pouco às refeições, o meu organismo não aguenta ficar muitas horas seguidas sem comer. Mulher prevenida evita crises de hipoglicémia.
  • 5) Tenho vertigens. Descobri isso há muitos anos, ao passear nas muralhas de Óbidos. De lá para cá, as vertigens pioraram. Há dois anos foi um terror passear no Palácio da Pena, em Sintra. Como se alguma força invisível me atraisse para a queda. Horrível.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Caverna

Imagem: Jovem, de Isabel Sabino

Clara percorre a estrada, sob a vigilância azul do céu. Pressente que as nuvens manipulam os fios do destino. Sente-se marioneta, no desengonço do passo. Esmagada [quem a protegia do céu?]. “As boas meninas vão para o céu”, sibilava a catequista, no tempo em que as crianças não confundiam um versículo com um verso ridículo.

Agora, Clara sabe que as meninas que foram para o céu querem nascer de novo. Dão pontapés no útero nubívago. Rebelam-se contra a serenidade burguesa, contra os bibes engomados, contra cabelos alinhados.

As boas meninas querem ser raparigas boas, modelos de campanhas publicitárias de lingerie ou capa de revistas masculinas. Não querem ter dinheiro para casar, mas casar para ter dinheiro. E querem casar para ter o prazer da infidelidade. E querem a infidelidade para pecar. E querem pecar para se lembrarem de Deus. E querem lembrar-se de Deus para se lembrarem da catequese, da infância. E então chorar…para usar óculos escuros e recordar Platão e uma certa caverna.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Sou toda ouvidos



Maria João & Mário João [Laginha]... como eu gosto destes dois.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Fervor cardíaco

«L'amour est un oiseau rebelle», de Simona Carli

Eis a recta final da conversa entre o senhor felpudo-que-não-come-gatos e a mulher nham nham [é este o petit nom que o senhor com nome de motociclo de duas rodas decidiu dar à mulher comestível]:

-Gosto de te ver assim…tombée en amour – diz ela.

- É um fervor cardíaco…eu é que não sei se gosto – retorque ele.


Somos tão idênticos nas inseguranças, homens e mulheres. Tão frágeis e cobertos de dúvidas, no amor recém-nascido. Sísifos a carregar certezas montanha acima. Certezas a rolar montanha abaixo, os ombros a esmorecer. Novos sinais [endireita os ombros, pá!] e toca a empurrar a esperança montanha acima.


Pensamos ser óbvios nos velados gestos que usamos para a denúncia do amor. Porém, aos olhos do outro, podemos não passar de figura obtusa. Queremos dizer amor [sentimos um tornado a revirar veias e ideias] e disfarçamos a nudez sentimental com eufemismos [digo ‘é bom ver-te de novo’ quando o que quero dizer é ‘senti tanto a tua falta, seu estúpido! não percebes que sem ti a minha vida não tem graça nenhuma?’]. Também utilizamos personificações [a minha caixa de correio tem saudades tuas], quando o que apetece é usar uma anáfora [amo-te, amo-te, amo-te]. Na nossa cabeça a dança de sinestesias intensas que não ousamos partilhar [quando o teu olhar me abraça, o teu sorriso sabe-me a mirtilos].

E neste jogo andamos, perdido o talento para a transparência do mistério.



[ó senhor felpudo-que-não-come-gatos, vamos ver se não metemos água {e água é o elemento-chave}, para não afogar a liberdade. Cada um no seu aquário, claro está]

Até que uma flor de incêndio

Morning Sun, Edward Hopper (1952)


Poema para habitar

A casa desabitada que nós somos
pede que a venham habitar,
que lhe abram as portas e as janelas
e deixem passear o vento pelos corredores.
Que lhe limpem os vidros da alma
e ponham a flutuar as cortinas do sangue
– até que uma aurora simples nos visite
com o seu corpo de sol desgrenhado e quente.
Até que uma flor de incêndio rompa
o solo das lágrimas carbonizadas e férteis.
Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua
sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte.


Albano Martins

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Jornalismo erectus


«Continuem a apoiar o Cristiano como têm apoiado até agora»
[Cristiano Ronaldo sobre Cristiano Ronaldo, em directo no Jornal da Noite, na SIC]

Ai, mas é que fica descansado. É isso mesmo que continuarei a fazer, meu caro CR7. Apoiar-te-ei exactamente como tenho feito até agora. E parece-me que a Ana e o Hugo Gonçalves farão o mesmo.

Fiquei um pouco baralhada...afinal, quem ganhou o prémio de melhor jogador de 2008, atribuido pela FIFA, foi o CR7 ou o Nuno Luz? É que, no directo, não vi apenas um microfone erecto, não. Vi ali uma exacerbada erecção verbal, que me baralhou, confesso.

Fogo sem artifício




Há muito tempo que não via uma série televisiva que me arrebatasse tanto. «Jane Eyre», uma produção da BBC, baseada na obra homónima de Charlotte Brönte, estendeu-me delicados dedos e levou-me a acompanhar as magníficas interpretações de Ruth Wilson e Toby Stephens. A austeridade pulsátil de Jane Eyre, o olhar [ai que olhar] cálido e atormentado de Mr. Rochester. Um par de singular beleza. Duas almas à procura de chegar a casa. O amor, sem fogo de artifício. Uma brasa que não apaga.



sábado, 10 de janeiro de 2009

Metamorfose

Imagem de Miguel Horta

Teoria das Cores

Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.

O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor — sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.

Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.

Herberto Helder, in Os Passos em Volta


quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Sushidelas

Sushi Girl 1 - Imagem de Riccardo Giordano

Sushi Girl 2 - Imagem de Riccardo Giordano

Sushi Girl 3 - Imagem de Riccardo Giordano



- Até me babo! - diz ela, enquanto se prepara para ir arejar as ideias. Um programa temperado por cinema e rematado com sushi. As escapadelas dela têm um nome: sushidelas.

Que sushi girl és tu, minha querida senhora dona tiazona?

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Sou toda ouvidos

Desde a infância que esta harmónica ficou presa nos ouvidos da minha memória. Tempos em que ainda via westerns. Um som perdurável. Inquietante. Com as grandes decepções, que ficam, em contínuo, a arranhar as cordas do coração. [Este post é para uma amiga maiúscula, que não merecia a arranhadela que a vida lhe está a dar].

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Run baby run

Imagem de Jaime Monfort


«O fecho éclair substitui o botão, pois o homem não tem tempo para reflectir nem para se vestir, de manhã. Não há hora de filosofia, nem hora de melancolia».

Ray Bradbury, in Fahrenheit 451

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Literature victim

Imagem de Nerval

Ela vestia o espírito nas melhores livrarias.

Nunca saía à rua sem livros de bolso.

Lucidez

Imagem de Helena Almeida

«Aprendi com os jornalistas que me fazem acreditar no jornalismo que ser repórter é ir ver e ouvir sobretudo o que ninguém está a ver e ouvir. Aprendi vividamente em Israel - com amigos, na imprensa, nos livros de escritores como David Grossman ou Amos Oz - que a lucidez é uma obrigação dos fortes, particularmente daqueles que já foram fracos. (...)

E é por tudo isto que fazer da defesa de Israel a origem e a moral de uma semana de bombardeamentos da Faixa de Gaza me parece do domínio da obscenidade. E uma obscenidade que fazemos nossa - nós, os cristãos, os compassivos, que bebemos o sangue de Cristo e tanta culpa carregamos, da Inquisição, do Holocausto, de sermos cúmplices por pensamentos, palavras, actos e omissões».


Artigo de opinião de Alexandra Lucas Coelho, na edição de hoje do Público. Imperdível ler na íntegra.

domingo, 4 de janeiro de 2009

De pés atados pelo coração

Ilustração de Alice Geirinhas

Fugiam um do outro, fugiam deles mesmos.
Mas estavam de pés atados
pelo coração

Ama como a estrada começa


«Ama como a estrada começa». Depois de ver o filme «Japanese Story», de Sue Brooks, aninhou-se nos meus braços esta imensa frase de Mário Cesariny.
Tony Colette, Gotaro Tsunashima e o deserto australiano. Despojamento. Tão perto, perto. Os fósseis que descobrimos dentro de nós quando temos tempo, espaço, quando somos. Espaço, espaço. A imensidão que somos, na imensidão do vazio. Acender fogueiras no peito nocturno. O avassalador rosto de Toni Colette. O riso de Gotaro Tsunashima. A camisa branca despida. Soltar a torrrente. Descontrair os músculos tensos do rosto. O vermelho.
[Fiquei à espera de ouvir esta música, mas não. Não faz parte da banda sonora de «Japanese Story»]