«O título do livro pensara nele enquanto olhava fixamente para a montra de uma pastelaria cheia de porquinhos de maçapão. Há já algum tempo que eu andava interessada na questão do canibalismo simbólico.Na altura, eram os bolos de casamento, encimados pelos seus noivos de açúcar, que muito em particular me fascinavam», Margaret Atwood
quinta-feira, 30 de outubro de 2008
Espantar os corvos do trigal
O post anterior pede-me luz, «Cinema Paraíso», música de Ennio Morricone, para contrariar, para espantar os corvos do trigal.
Suicida sobrevivente

Pum, pum. Duplo homicídio. Quatro crianças a escurecerem, a tiritarem, sob os cobertores. São suficientes, os cobertores, mas a noite tornou-se polar, sem que eles percebessem porquê. Pum, pum. A palidez da lua, a orfandade.
Diz-se crime passional e não se percebe. Não se percebe nunca. Passional. Espanto, da lembrança, o «Pasión» do Rodrigo Leão, que não é para aqui chamado. Procuro o dicionário, que é objecto de arrumar ideias. Confirmo que é relativo a paixão, susceptível de paixão.
E que é isso de paixão? Tenho tantas dúvidas, sou adulta. Queria ser criança para ter as dúvidas todas e pensar que os outros, os adultos, mas dariam, infalíveis. E que bastaria a firmeza na voz e um afago na cabeça para espantar as dúvidas, como se fossem corvos no trigal.
Concentro-me na paixão. A paixão pode atear fogo entre duas almas e levar um corpo a arredondar formas, perante o embevecimento do outro, corpo. A paixão pode parir quatro filhos. O amor os educará. Mas, a paixão também pode ser a arma de fogo que arranca o sangue das veias e o torna visível. Letalmente, visível. Pum, pum.
O dicionário dá-me pistas, não respostas firmes: «do Lat. passione, sofrimento. s. f., sentimento excessivo; amor ardente; afecto violento; entusiasmo; cólera; grande mágoa; vício dominador; alucinação; sofrimento intenso e prolongado; parcialidade; o martírio de Cristo ou dos Santos martirizados; parte do Evangelho em que se narra a Paixão de Cristo; colorido, expressão viva, em literatura».
É pá, ela estava a pedi-las, caramba. Ainda mal se tinha divorciado e já tinha na cama outro, sob o tecto da casa que foi feita com o suor do trabalho do ex-marido. Ele passou-se, pá, que um homem não é de ferro, pá. Saiu de Espanha, irado, que nem cão raivoso. Entrou na madrugada, de arma em punho. E foi à queima-roupa. Pum, pum.
terça-feira, 28 de outubro de 2008
Assombro
domingo, 26 de outubro de 2008
Outubro

quinta-feira, 23 de outubro de 2008
Mata-borrão precisa-se

quarta-feira, 22 de outubro de 2008
Dicionário da sobrevivência

Cremações públicas, máquinas fotográficas arregaladas. Corpos enrolados em lençóis ardem à beira do rio. O rio não chora os mortos, enxuga as emoções e segue em frente, sempre em frente. A dignidade do movimento contínuo das águas. As cinzas a misturarem-se com o lado abjecto dos hábitos humanos. Estações de tratamento de águas residuais inexistem por ali. Nada que dissuada a meninice de refrescar o corpo na imundície liquefeita.
Na rua, duas existências cruzam-se. Uma menina pedincha atenção, pede «a book, a book». Não quer rupia, quer conhecimento. Não quer sonho, nem a candura dos contos infantis. Ignora que haja cor-de-rosa (nem imagina que exista uma coisa apelidada de imprensa cor-de-rosa). A menina quer um dicionário de nepalês/inglês. Conhecer a língua inglesa é o sonho pragmático a que a menina aspira. Quer um dicionário, para melhor pedir. O turista faz-lhe a vontade, vai a um quiosque e alimenta-lhe a sobrevivência.
sexta-feira, 17 de outubro de 2008
E ficaram adormecidos para sempre

terça-feira, 14 de outubro de 2008
Veste-te

- Veste-te! – ordenou-lhe. Não suportava vê-la vulnerável. A nudez, física ou anímica, perturbava-o. Ele gostava de mulheres perigosas. Não queria familiaridade, não queria percorrer os sinais do corpo dela, como se fossem constelações. Não queria conhecê-la, saber que vidas, continentes, astros, ela trazia dentro de si. Queria-a contida, de espartilho. Mais observadora, que oradora. Queria-a perigosa, hábil na gestão de silêncio. O mistério era uma barricada desejável. Tinha de senti-la perversa, para ter prazer no saque. A mansidão na mulher causava-lhe repulsa.
Medida com pernas para andar

Bulimia radical

sexta-feira, 10 de outubro de 2008
Papel principal


quinta-feira, 9 de outubro de 2008
Quem nunca se sentiu galinha, levante a asa

«O senhor padre diz que é preciso ter paciência. Terá uns trinta e tal anos, o senhor padre, podia ser meu filho. E fala de paciência como se me desse alguma novidade. Pudesse ele sentir, durante uma noite que fosse, o frio que me vai cá dentro, não se atrevia a chamar pecado àquilo que eu sinto. Pecado desprezar a vida que deus nos deu e só a ele pertence? Eu acredito no juízo final e passo muitas horas a magicar no que vou contar se a minha alma for a tribunal e me autorizarem a abrir a boca. É pecado ter maus pensamentos, eu sei. Mas alguém me deu razão e maneira de ter pensamentos bons? A vida não é um desterro para toda a gente. Há muito quem a goze sem o menor merecimento. E há muito quem goze porque pode gozar com a cara de quem goza menos. O senhor padre julga que eu estou zangada com o mundo. Não, isso não é verdade. Dou-me bem com as galinhas. Deito-me com elas e com elas saio da cama. Irmãos e irmãs voaram para longe, enquanto a capoeira foi ficando. Mal a porta se abre, é um corrupio e uma felicidade. Não são esquisitas no comer, não chegam a velhas porque acabam na panela. E lá vão dando ovos, quer faça chuva, quer faça sol... No tempo das geadas, trago sempre uma para dentro. Sento-a ao meu colo e é ela que me aquece e me faz companhia. Se deus não as tivesse criado tão cagonas e mijonas, mudava a capoeira para a minha cozinha. Não são estúpidas, as galinhas. São bichos presos à casa. Como eu. Não são donas de si, nem donas do seu viver. Como eu. Têm asas, porém não podem voar. Como eu...»
Este excerto foi retirado da belíssima dramaturgia escrita por Regina Guimarães para o espectáculo «Estufa Fria», com encenação de Igor Gandra, uma co-produção do Teatro de Ferro e da Comédias do Minho. A última parte do excerto ficou retida na minha memória. Há tantos bichos presos...a casas; relações afectivas frustradas, doentias ou apáticas; empregos castradores; bancos; doenças do corpo e da alma; televisores e outras dores. Tantos bichos com asas e sem migrações. Quem não se sentir galinha, num momento ou outro da vida, levante a asa.