domingo, 17 de maio de 2009

Pés de barro

O Modelo Vermelho (1937), René Magritte


CANCER CELLS


"Cancer cells are those which have forgotten how to die."
(Nurse, Royal Marsden Hospital)

They have forgotten how to die
And so extend their killing life.

I and my tumour dearly fight.
Let's hope a double death is out.

I need to see my tumour dead
A tumour which forgets to die
But plans to murder me instead.

But I remember how to die
Though all my witnesses are dead.
But I remember what they said
Of tumours which would render them
As blind and dumb as they had been
Before the birth of that disease
Which brought the tumour into play.

The black cells will dry up and die
Or sing with joy and have their way.
They breed so quietly night and day,
You never know, they never say.


O dramaturgo britânico Harold Pinter, que morreu, aos 78 anos, vítima de cancro, escreveu este poema em 2002. Há uns anos, um amigo, colega da redacção de então, tinha um recorte de jornal, com este poema, colado na lateral esquerda do computador. Lembrei-me do poema hoje.


Este fim-de-semana, um jantar, em casa de uma amiga, fez-me reencontrar com uma antiga colega de trabalho. A F. minguou. O corpo da F. parece querer ocupar o menor espaço possível, como se, perdendo volume, houvesse menor espaço interior para a dor. O pai da F. também vai perdendo peso, à medida que as células-que-se-esqueceram-de-morrer se estendem como sombra. O corpo do pai de F. foi aberto, para logo ser fechado. Porque o tumor se tornou dono e senhor daquele corpo.


O pai de F. está a morrer e F. está à beira da implosão. A médica que acompanha o pai, no hospital, disse-lhe que ela este fim-de-semana tinha de contar tudo, tudo, à mãe. A mãe de F. está ainda na fase da negação. A irmã de F. está nuns 19 anos muito egocêntricos, não tem noção de que o pai está a morrer. Há um ano, F. explicou à mãe que o tumor não foi removido, que a cirurgia serviu apenas para aliviar, não para eliminar. A mãe alheou-se da realidade. E agora F. tem de lhe colocar os pés na terra. E como fazer isso, sem enterrar a esperança?


Como dizer à mãe para aproveitar os últimos tempos de vida do pai? Como contar à mãe aquilo de que a mãe já se deveria ter mentalizado há um ano? Como nomear aquilo de que se quer fugir? Como falar da iminência da morte, sem fazer uma espécie de luto antecipado? Como ser frontal com a mãe, sem lhe dar um abraço? [um abraço que F. não se sente capaz de dar porque não está habituada a abraçar a mãe e sabe que abraçá-la agora é admitir a gravidade da situação, é revelar a vulnerabilidade]

F. descobriu, há dias, que o pai tinha cócegas nos pés. F. comprou um creme gordo para hidratar os pés do pai, no hospital. Ao massajar os pés descobriu o que, em anos de convivência, ainda não tinha descoberto.


F. sabe que eu estava a conversar com ela e a sentir-me descalça, com pés de barro.


3 comentários:

Violet disse...

Infelizmente tenho o mais terrível dos karmas...o de conhecer o jogo das probablidades...e perder a esperança por isso...

francisco carvalho disse...

Esta tua casa absolutamente admirável com textos que nos tocam profundamente...

Liliana Garcia disse...

Violet, não estarás na melhor das posições, não. O saber pode ser um lugar emotivamente muito desconfortável.

Francisco, obrigada :)

Beijo grande, para os dois.