terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

De voos e espinhos

Imagem de Miminepo


Quando me perco pelas livrarias, normalmente sei o que quero. Mas, de vez em quando, há livros inesperados que me acenam com as suas mãozinhas tipográficas. As frases começam a trepar pelos meus olhos. E agarram-se a mim, como criança desamparada. Há livros que nos procuram a nós. Foi o que aconteceu com «Histórias de amor», de Robert Walser [1878-1956]. Comecei a folheá-lo, já com a intuição de que não iria encontrar uma escrita melosa. Uma das 81 curtas narrativas abraçou-me: «A Cegonha e o Porco-espinho». Uma escrita deliciosa, provocadora, irónica e com um humor desconcertante. Bastou esta breve história para o desejo da compra se instalar. Não é qualquer livro que me desperta um sorriso nos lábios.

Aqui fica um excerto da narrativa:

«P
orco-espinho:
Diz-me, não achas que sou comovente?

Cegonha:
Há muito que te amo.

Porco-espinho:
Quanto a isso, nada tenho a dizer. Não falo com quem me ama. O amor é tão desconsiderado, tão insolente! Não quero nada com imprudentes, fica a saber. Estás enamorada dos meus espinhos, não é verdade?


Cegonha: Esse teu casaco de espinhos fica-te lindamente. Pareces muito bem com ele. Só é pena que sejas tão circunspecto. Um porco-espinho não havia de ter uma noção tão estrita do decoro.

Porco-espinho: Enganas-te, e vou corrigir-te. Uma cegonha pode permitir-se tudo, mas não um porco-espinho. És elogiada, elevada a ideal de educação e da família. Comunidades inteiras olham para ti com sincera admiração. Só despertas boas impressões. Já comigo não é assim. De que me serve a tua afeição? Estás perdida de amores pelo meu medo?

Cegonha: Sim, julgo que sim.

Porco-espinho: Não achas que me assenta lindamente? Fico tão redondo e apetitoso vestido do meu medo. Tenho espinhos porque tenho medo. Sou feito apenas de medo e vontade de fugir. Olha para a minha cabecinha, para os olhinhos, o narizinho. Não voo majestosamente como tu. Nada em mim aspira às alturas. As minhas patas são incompreensíveis, mas é por isso que sou tão engraçado, porque pareço tão tonto, tão indefeso. Não te pavoneies com as tuas asas, não! Não faço ninhos acolhedores no ar claro dos campanários. Moro na floresta e só à noite me atrevo a sair de mansinho.

Cegonha:
Tens timidez!

Porco-espinho:
Tens pena de mim. Mas eu não sei o que é ter pena. A compaixão é um sentimento grandioso. Não condiz comigo, que sou tão pequeno. Os meus espinhos, de resto, são puro escárnio, troçam de mim.

Cegonha: Troça então de ti o que serve para tua protecção. Amo-te ainda mais por esse teu desamparo.

Porco-espinho: Mas sou tremendamente bem-disposto. Nem imaginas como é magnífico viver dentro de um corpo ridículo. O meu bem-estar é de uma extrema originalidade. Sou invadido pela consciência deste meu aspecto engraçado. Tu, aliás, também és um tanto estranha.

Cegonha: Referes-te à nobreza do meu porte. Mas a culpa não é minha. Tenho este andar cerimonioso e comedido, mas é esta gravidade que me faz levantar voo. Percebes?

Porco-espinho: Proíbo-me de perceber o que quer que seja. O entendimento apenas me traria dissabores. Julgas que me daria ao trabalho de tecer considerações a teu respeito? Deixo as reflexões profundas para ti e para outros como tu. Tenho pena de ti por não conseguires deixar-me, mas diverte-me ter pena de ti. Por isso agora já não tenho pena de ti. Tenho a forma de um monte, vês, e dou a impressão de estar morto.

Cegonha: É uma grande vantagem. Admiro-te muito, estás a rir? (...)»

2 comentários:

Alexandre disse...

1818-1956?

Liliana Garcia disse...

Alexandre, obrigada pela chamada de atenção para a gralha. Robert Walser nasceu em 1878. Já corrigi :)