sábado, 1 de novembro de 2008

Sete palmos acima




Troco o cheiro doentio das velas a arder e os olhares de soslaio de quem faz do cemitério uma feira de vivas vaidades, pela nostalgia caseira. Os meus mortos estão todos cá dentro, bem dentrinho, fora do espaço rectangular de uma sepultura. Sem terra, mármore e flores de pétalas cabisbaixas. Sete palmos acima dos vermes. Sete palmos acima dos pingos de cera.


Recordo o sorriso da avó Nair, recordo-o de cada vez que me olho ao espelho a sorrir. Lembro o sabor da rabanadas, da torta com doce, dos biscoitos, que das mãos dela saiam. Depois dela partir, não mais me entusiasmaram as rabanadas. Lembro-me do avô António, da vida sofrida no amparo de duas muletas, do corpo possante que minguou, das brincadeiras do 'serubico tico tico', do carro de bois, lento, a percorrer a calçada de paralelos e o pinhal.

Do bisavô António recordo o bigode que picava, a meiguice e de como toda a criançada gostava dele. Lembro a bisavó Aldina e da partida inconsequente que lhe fiz, levando-a a cair no chão [desculpa,vó]. Lembro-me da pequenina e magra ti' Encarnação, da falta de dentes, do toque das mãos finas e com artroses, da longevidade [chegou aos 96 anos]. Recordo o tio Almeida, a perda de peso equivalente à perda de memória. Alzheimer a torná-lo sombra do homem que fora. Lembro o último dia em que o vi, dei-lhe a mão e foi tão bom ouvi-lo dizer o meu nome e recordar-se da minha profissão.

E recordo a mana gémea que nunca conheci senão dentro barriga da mamã. A partilha do aconchego uterino durante sete meses. Depois, o vazio. A separação prematura. Ela nem chegou a chorar. Por escassos minutos apenas, respirou este mundo. Eu fiquei cá para um dia lhe contar o que é isto de viver. [Sinto falta de te conhecer, mana; muitas vezes dei comigo com vontade de ter um espelho à minha frente, um espelho de carne e osso, sabes?]

Convoco "Ponette", de Jacques Doillon, esse filme que me arranca o coração e o coloca no lugar exacto do outro. Um dilacerante poema visual sobre a perda. O ensinamento de como a tristeza nos deve acordar para a vida.