quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Do mistério

Nu Sentado com o Braço Direito Estendido (1910), Egon Schiele


A alma de um escritor é um mistério. Lemos e não nos iludamos: nunca encontramos a revelação. As palavras não revelam. Lançam novos véus.

A interrogação, uma bengala permanente, à qual nos seguramos para não admitirmos que não queremos todas as respostas, mas todas as ilusões.


«Violaste a lei do distanciamento estético. Sentimentalizaste a experiência estética com essa rapariga: personificaste-a, sentimentalizaste-a e perdeste a noção do distanciamento essencial para o teu gozo. E sabes quando isso aconteceu? Na noite em que ela tirou o tampão. O distanciamento estético necessário desmoronou-se, não enquanto a vias sangrar - isso esteve bem, foi bom -, mas quando não pudeste conter-te e te ajoelhaste. E que diabo te levou a isso? O que existe atrás da comédia de essa rapariga cubana levar um tipo como tu, o professor do desejo, ao tapete? Beber o sangue dela? Eu diria que isso constituiu o abandono de uma posição crítica independente, Dave. Adora-me, diz ela, adora o mistério da deusa a sangrar, e tu obedeceste. Nada te faz deter. Lambes o sangue. Consome-lo. Digere-lo. Ela penetra-te, a ti. O que virá a seguir, David? Um copo da urina dela? Quanto tempo decorrerá antes de suplicares pelas suas fezes? Eu não sou contra isso por ser anti-higiénico. Não sou contra isso por ser repugnante. Sou contra isso porque é apaixonar-se. A única obsessão que toda a gente quer: "amor". As pessoas pensam que ao amar se tornam inteiras, completas? A união platónica das almas? Eu não penso assim. Penso que estamos inteiros antes de começarmos. E o amor fractura-nos. Estás inteiro e depois estás fracturado, aberto. Ela foi um corpo estranho introduzido na tua totalidade. E durante ano e meio lutaste para o incorporar. Mas nunca serás inteiro enquanto não o expelires. Ou te livras dele ou o incorporas através da autodeformação. E foi isso que fizeste e te levou à loucura».


Philip Roth, in O Animal Moribundo


3 comentários:

Miguel Marujo disse...

pasmo pela beleza da imagem que se ilustra no texto e no texto que a acompanha...

Paulo disse...

"Penso que estamos inteiros antes de começarmos. E o amor fractura-nos."

e de que maneira...
e agora vou procurar o Animal Moribundo

Anónimo disse...

Tenho seguido a obra incómoda (para os homens) deste escritor. Às vezes penso se a recomendaria aos meus amigos; existe um certo extertor do género expresso numa fluidez pastosa das palavras...