domingo, 31 de maio de 2009

Da ruralidade


Irrito-me, com alguma solenidade, quando a comunicação social (cs), da qual faço parte, trata quem vive fora de Lisboa como gente parola, ignorante e feia. A cs gosta de ir até ao que detestavelmente designa por «Portugal profundo» e encontrar personagens risíveis ou dignas de dó, para encaixarem na ideia feita que têm sobre o que é isso de viver no interior do país.

O estereótipo é muito condizente com a escassez de tempo e dinheiro que as redacções vivem. E como a maioria dos jornalistas vive em Lisboa, e muito centrados na redacção, nas fontes do costume, nos ambientes citadinos do costume, quando saem para o «mundo real» (designação que só vem reforçar o facto de muito jornalista viver desligado das vivências de uma grande parte do país, à beira-rio plantada), toca de procurar o estereótipo. Porque é giro mostrar à urbe como se vive nesses locais exóticos chamados de aldeias e dar a conhecer pessoas, tadinhas, broncas que valha-lhes deus.

O estereótipo pode ser a velhota toda vestida de preto, lenço na cabeça e buço viçoso, pode ser a pessoa de Biseu que fala axim ou a pexoa de outro xítio qualquer desde que fale axim. O estereótipo passa por um jornalista ir fazer uma reportagem a Oliveira do Douro, em Cinfães, distrito de Viseu, sob o pretexto de se tratar da freguesia que registou a abstenção mais elevada nas últimas eleições europeias, e tratar, de forma humilhante as fontes. Se Oliveira do Douro é a freguesia mais abstémica, vamos lá mostrar o porquê. A ideia é boa. O resultado decepcionante.

Vem isto a propósito de quê? De um artigo escrito por JFG, nesta edição do SOL. Aprecio o trabalho do JFG (e foi com espanto que vi que o texto era assinado por ele). Mas a reportagem «Longe da Europa» está longe de me motivar elogio.

A reportagem começa desta forma: «Fátima, de 44 anos e feições rurais, tem ideia de que em Junho haverá umas eleições. “São para a Junta de Freguesia, ‘num’ é?». O que são feições rurais? De que forma o facto de se nascer em meio rural condiciona os traços do rosto? Alguma vez algum jornalista escreveu: «Mário Lino, ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, 69 anos e feições rurais»? Não, pois não...o senhor ministro pode ter feições grosseiras, mas nunca foi chamado de rural ou boçal num texto jornalístico, pois não? Dias Loureiro (natural de Aguiar da Beira), Jorge Coelho, (natural da aldeia de Contenças-Gare, em Mangualde) ou Pinto Monteiro (de Porto de Ovelha, em Almeida) nunca foram tratados, na cs, como pessoas com feições rurais, pois não? Se o JFG queria dizer que a senhora dona Fátima não devia muito à beleza, mais valia dizer que ela é esteticamente pouco agradável (que é menos fruto da circunstância geográfica e mais dependente da genética ou do desleixo).

Na reportagem lê-se ainda: «A conversa do SOL com uma funcionária é interrompida aos gritos pela «responsável», uma mulher gorda e antipática, de voz bruta». Como? Chama-se assim, com todas as letras, alguém de gordo, antipático e ainda se diz que a voz é bruta??? Já viram jornalistas a ousarem chamar algum político de gordo (mesmo que o seja), antipático (mesmo que o seja) e a acusarem-no de ter voz bruta (mesmo que a tenha), perante a recusa em prestar declarações? Não, não se chama alguém com poder de nomes feios, muito menos num texto jornalístico. Até porque gente com poder tem advogados.

Pelo meio do texto, JFG ainda fala dos «dentes amarelos e espaçados» de Nazaré, uma mulher de 65 anos. Um pormenor importantíssimo que ajuda a perceber o facto da senhora dona Nazaré confundir o nome Paulo Rangel com Paulo Regente. O problema da falta de informação ou desinteresse deve estar ligado a um problema de dentição. Deve ser isso.

Que JFG tenha ficado incrédulo com tamanha ignorância das mulheres de Oliveira do Douro (só falou com mulheres, curioso), compreendo. Eu também fico atónita de cada vez que encontro pessoas, rurais ou citadinas, com os horizontes mais curtos que os do frango de aviário. Mas da estupefacção à ofensa vai um passo…o passo (im)ponderado da escrita. E o resultado final da reportagem humilha as mulheres de Oliveira do Douro.


P.S
. Sublinho que tenho o maior respeito profissional por JFG. Considero-o um bom jornalista e não é este trabalho que muda a minha opinião sobre as virtudes de JFG. Este post "serve-se" apenas de um artigo recente, em que é visível o olhar preconceituoso que se lança sobre o meio rural, para abordar uma questão que é prática comum no jornalismo. Foquei-me no texto de JFG porque foi o exemplo mais recente que me passou pelos olhos. E só por isso.

5 comentários:

Carlos Enes disse...

Bem observado, Raquel.

Devo dizer-te que quando comecei na Redacção do Indy percebi bem a vantagem de trabalhar a centenas de quilómetros de casa: a vantagem das viagens.

Esta "snobeira" parola não incomoda ninguém, não é? A ERC e os iluminados "deontólogos" do sindicato estão demasiado ocupados em defender, contra factos, as pessoas de Vilar de Maçada que já não se vestem em Vilar de Maçada.

Robin K disse...

Que enchi de folhas secas...

e de onde um dia verei flores nascer.
Quem sabe....

Obrigado pela força

Robin K

Anónimo disse...

Sim, sim, é verdade, mas também já vi os gajos de Lisboa, estes mesmos do tipo JFG ou FGJ ou que gaita é, por quem não se pode ter a mais pequena admiração quando é jornalista deste calibre, ser tratado nas páginas do EL Pais como o tipo fungão, pintarolas, desdentado e feio, que traceja copos de aguardente numa tasca da Mouraria. Não, não é uma questão de geografia, é de antropologia que se trata. Com uma miserável ignorância como pano de fundo.
Rita

Ice-device disse...

Posso dizer que a Odete Santos é gorda e tem uma voz bruta? Posso? Posso?

Humf, realmente esse artigo não retrata a realidade. É um bocadinho como "a liga dos últimos". Nada a que não estejamos habituados.

O pessoal de Lisboa [ou deverei dizer Lx?] Devia passar uns dias a trabalhar no Douro que era para ver se ficavam um bocadinho mais humildes.

Mike disse...

Não somos todos assim. Só alguns. Ok, provavelmente a maioria.
Este teu post devia ser de leitura obrigatória nas faculdades.
Parabéns.

Luís Nunes
Jornalista, Lisboa (ou Lx)