sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Um pouco mais de azul

Pintura Habitada, de Helena Almeida


Há quem queira trocar de carro. Há quem queira trocar de casa. Há quem queira ter férias em destinos paradisíacos. Há quem queira ter os gadgets mais xpto. Há quem queira encher o armário com dezenas de sapatos. Há quem queira aparentar mais sinais exteriores de riqueza que o vizinho ou os colegas de liceu. Há quem se sinta frustrado e infeliz por não conseguir realizar esses sonhos com código de barras.

Eu só queria passar menos tempo no hospital. Só queria não estar tão familiarizada com os rostos de tantos médicos, enfermeiros e auxiliares [por mais competentes e atenciosos que sejam, e que são]. Só queria não ver a minha mãe sofrer, o meu pai irritadiço e de rosto tenso e o meu irmão a viver de forma desapaixonada. Só queria ver o meu olhar cheio de certezas e serenidade. Só queria que palavras como neoplasia, quimioterapia, colonoscopia, ecografia, tac, cateter, não estivessem tão presentes na minha vida.

Gostava que a minha tristeza se reunisse apenas em torno das viagens que não foram feitas, do carro que não foi comprado, dos sapatos que foram apenas cobiçados. Gostava de ter mais futilidade e leveza na minha vida [nunca pensei vir a dizer isto]. Gostava que cancro fosse um vocábulo distante, um rumor longínquo.

Só queria que este post fosse ficção. E que, há dois anos, não tivesse [tivéssemos] levado um valente murro no estômago.

[Amanhã estarei melhor. Quando encontrar o sorriso de uma mulher extraordinária a iluminar uma cama de hospital]


P.S. A mulher extraordinária que tem passado umas temporadas no hospital é a minha mãe. Para que não haja equívoco.

Burn out


Dear life,

burn me, but please can you burn me softly?

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Despudor

Imagem de Katia Chausheva


Já estava familiarizada com a presença física de Silvina, quando decidi ir morar com ela no apartamento do namorado dela. Tinha coabitado com Silvina numa residência particular [não universitária] só para mulheres. Éramos umas 20 raparigas com um ponto em comum: a Universidade do Minho. Todas estudantes, uma delas professora universitária. De Silvina nunca retive mais que a superfície. Partilhávamos as horas do jantar, alguns minutos na cozinha, cruzávamo-nos na casa de banho, convivíamos na sala de estudo, trocávamos algumas impressões. No meu quarto só entrava quem eu queria. E eu não a queria lá. Não me lembro de partilhar intimidades com Silvina. Não me imagino a carpir mágoas no colo dela. Nítida ausência de empatia.

Silvina, com os seus longos cabelos alourados, baixa estatura e ar vulgar, nunca me caiu no goto. Há coisas que são mais da ordem do intuitivo do que da ordem do palpável, e Silvina sempre teve um ar demasiado vulgar para o meu gosto, qualquer coisa de ordinário se escondia por detrás daquela personalidade empinada. Não que eu tivesse presenciado, nessa altura, algum acto despudorado. Mas há coisas que se sabem sem a luz do olhar.

Os primeiros tempos na casa do namorado de Silvina foram vividos com satisfação. Éramos três [eu, Silvina e Marisa] a viver num confortável T3. Nós as três conhecíamo-nos da residência, sendo que eu era amiga da Marisa, o que tornava mais solarenga a convivência. O namorado de Silvina residia numa aldeia, nas redondezas de Braga, e era raro ir ao apartamento. Por isso, Silvina acabava por ser, na prática, a dona da casa. Era ela quem recebia o dinheiro da renda.

Com o contacto diário, percebi que Silvina encaixava, cada vez mais, nas minhas ideias pré-feitas. Comecei a não achar muita piada a determinadas situações, como utilizar o meu secador de cabelo, estragá-lo e nem se prontificar para o mandar arranjar; ou ir ao frigorífico comer dos meus víveres e não repor. Mas o cúmulo do abuso foi eu ter entrado no quarto dela e ver no chão um par de cuecas minhas. Olhei uma, duas, três vezes. E ali estava, como despojo íntimo, um par de cuecas minhas, usado por ela. Os meus maxilares descaíram até ao umbigo. [nunca toquei no assunto, tão enojada que fiquei com esta forçada partilha de intimidade; ela que ficasse com as cuecas]

Mas o cúmulo dos cúmulos ainda estava para chegar. E chegou, na altura do Enterro da Gata [Queima das Fitas, nas outras academias]. Chegou e era espanhol. O namorado à distância de alguns quilómetros. E a cama ali tão perto. Eu e a Marisa percebemos que Silvina tinha levado um gajo qualquer para o apartamento e nem ousámos sair, cada uma do seu quarto. Eu e a Marisa queríamos evitar o embaraço. Não o nosso, mas o dela. Silvina, com o maior despudor, levou o gajo espanhol para o quarto onde ela dormia com o namorado, no apartamento do namorado. E lá passaram a noite, com bom vento. De manhã, o jovem partiu. Colocou-se um lençol sobre o assunto.

Não me recordo se ouvi gemidos. Só me lembro do meu queixo novamente descaído até ao umbigo. Sempre me quis parecer que o namoro de Silvina era um óptimo negócio. Pragmática, a gaja. O dinheiro que ela poupou em renda. Silvina só falhou na escolha de curso: em vez de engenharia de sistemas e informática, devia ter escolhido economia.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Subtileza

Eva Green, no filme «Os Sonhadores», de Bernardo Bertolucci


«O que me atrai na mulher é a subtileza para as coisas difíceis de pensar. Dou aulas a turmas onde 80 por cento são mulheres, tenho a sorte de estar sempre a a ver raparigas muito inteligentes na condição de anjos que querem voar o máximo. Sei que estou a ficar viciado nisso, mas o que mais me exalta numa mulher é essa capacidade de pensar filosoficamente. Não consigo namorar com uma pessoa que não seja de Filosofia, por mais bonita que seja. Já fiz algumas experiências, todas elas terríveis, catástrofes.

O máximo do erotismo é ver uma mulher pensar comigo, ler um texto que eu conheça e levar-me a descobrir coisas. Quando pensamos, estabelece-se esse lugar de ressonância que tem como contraponto dois corpos assimétricos, condenados a ser incognoscíveis um para o outro. A mulher coloca-se no espaço do masculino, o espaço do pensamento, onde não deixa de ser mulher no plano do corpo e isto tem uma forte dimensão erótica, de toque e de confusão das peles».


[Excerto de texto de Ana Sousa Dias, a partir de conversa com Nuno Nabais, professor de Filosofia, na rubrica «O que sei sobre as mulheres», na Pública de 15.02.09]




domingo, 22 de fevereiro de 2009

De voz perdida

Imagem de Dolce Babanne


Estou sem voz. Às vezes, fico sem palavras. Mas hoje estou de voz perdida, literalmente. Vou ao centro de saúde porque isto já lá não vai com tantum verde ou hydrotricine. O médico pergunta-me o que tenho. Mal abro a boca, percebe que é mais o que eu não tenho. O senhor doutor brinca. Diz-me que o namorado deve agradecer eu estar assim, que é da maneira que não berro com ele. Saio de receita na mão, toma lá com antibiótico. Lá vou eu, rua fora. Eu e a minha traqueíte à procura da farmácia de serviço.


Receita aviada, toca a ir em direcção do carro. A ver se fujo do sol. Encontro o senhor de bigodinho à marialva. O senhor de bigodinho à marialva que teima em me cumprimentar com dois beijinhos, apesar de eu dizer que estou doentinha. O senhor de bigodinho à marialva começa a desfiar o habitual discurso em torno das virtudes estéticas que encontra em mim. A mulher, filha e cunhado do senhor engatatão vão um pouco mais à frente. Sussurro-lhes as boas tardes. O senhor engatatão cinquentão prossegue, em frente à família, os lugares-comuns do costume: «Se eu fosse solteiro, eras chinelo para o meu pé», «os táxis têm uma placa a dizer livre ou ocupado, tu devias ter uma coisa dessas também». Sorrio, em frente à mulher, filha e cunhado. Despeço-me e ponho-me a andar. Há dias em que dá jeito não ter voz.


[uns perdem a voz, outros perdem a cabeça e a compostura]

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Sou toda ouvidos





Porque os The Gift vão ser sempre nossos. Porque os The Gift nos transportam para o campus do sonho, do crescer, do querer ser. Porque Braga nos uniu, nos fez escolhermo-nos uns aos outros. Porque, apesar das circunstâncias geográficas, continuamos [ e continuaremos, emos, emos] juntos. Por tanta, tanta coisa, e também por, como diz e bem a Alf(ace), a amizade ter som e por nós termos aprendido que a vida não é simples, aqui fica «Ok! Do you want something simple?».

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A reportagem e o pretexto

My heart is protected, de Jill Auville



Gosto tanto, tanto, de ver os meus amigos darem o melhor de si. O talento não é tesouro que se esconda, mas toque de Midas. Por isso, fico contente quando dou por mim embevecida a ver que os meus amigos, para além de serem os melhores miguitos do mundo, são bons no que fazem.

Zé Miguel, fizeste uma reportagem do caraças, de se lhe tirar o tricórnio. Foram dois meses a viveres rente a miúdos sofridos, rapazes que vão ser adultos destroçados e cheios de precipícios [doeu ouvir um rapaz, de 17 anos, dizer que não lia, que não sabia ler, que não confiava nele próprio a ler]. Miúdos empurrados para a institucionalização devido ao desamor familiar [ou inabilidade para o amor ou o que lhe queiram chamar de forma mais cruel, ou crua].

Sei que, perto daqueles miúdos, te sentiste imensamente abençoado por teres tido uma infância amada e amável, por teres tido uma adolescência povoada pelo companheirismo d' Os Suspeitos do Costume. Por, no início da vida adulta, nesse útero que é o campus universitário [parafraseando a Clara Pinto Correia], teres conhecido pessoas que te desviaram da missa dominical. Imensamente abençoado por teres amigas [duas chatas lindas, não é?] que te lembravam que pronunciar «passamos» e «passámos» de forma igual não era o mais correcto fora da geografia nortenha. Imensamente abençoado por teres tido a serenidade económica de uma bracarense família de classe média, sem sentires necessidade de despir as malhas Paul & Shark e vestir uma irreverência insolente.

Sei que, perto daqueles rapazes de sonhos sem nascença, te sentiste imensamente abençoado por, durante o curso, teres ao dispor uma potente carrinha que nos desencaminhava das aulas de Filosofia Social e Política e nos levava para o Bom Jesus [às vezes, sabia bem ver a Universidade do Minho por um canudo], ou para as sessões de cinema no Bragashopping. Sei que te sentiste imensamente abençoado quando, pela primeira vez na vida, saíste de casa dos pais, para ires estagiar na «Chique» Notícias. Abençoado por teres os abraços dos teus pais e manos, as lágrimas quentes da tua mãe, o apoio dos teus amigos, a tua determinação.

Sei que, ao ouvires um dos rapazes institucionalizados dizer que não sabe o que é o amor, te sentiste imensamente abençoado por, nos bancos da UM, teres encontrado uma rapariga de Santa Comba com quem podias falar do vosso Benfica e do vício pelos Ficheiros Secretos, uma rapariga que rejeitou os propósitos amorosos da tua serenata, a mesma rapariga que, anos depois da rejeição, se tornou a mulher da tua vida [vocês estavam destinados a ficar juntos, todos sabíamos disso]. Perante aqueles miúdos da Casa do Vale, sei que te sentiste imensamente abençoado por, em breve, ires ser pai do Gonçalo. E saberes que dos teus gestos só irá sair amor pelo teu, vosso, filho.

[Motinha, já reparaste que nos conhecemos há uma dúzia de anos? E que uma boa reportagem serve de pretexto para falar de amizade?]

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

De voos e espinhos

Imagem de Miminepo


Quando me perco pelas livrarias, normalmente sei o que quero. Mas, de vez em quando, há livros inesperados que me acenam com as suas mãozinhas tipográficas. As frases começam a trepar pelos meus olhos. E agarram-se a mim, como criança desamparada. Há livros que nos procuram a nós. Foi o que aconteceu com «Histórias de amor», de Robert Walser [1878-1956]. Comecei a folheá-lo, já com a intuição de que não iria encontrar uma escrita melosa. Uma das 81 curtas narrativas abraçou-me: «A Cegonha e o Porco-espinho». Uma escrita deliciosa, provocadora, irónica e com um humor desconcertante. Bastou esta breve história para o desejo da compra se instalar. Não é qualquer livro que me desperta um sorriso nos lábios.

Aqui fica um excerto da narrativa:

«P
orco-espinho:
Diz-me, não achas que sou comovente?

Cegonha:
Há muito que te amo.

Porco-espinho:
Quanto a isso, nada tenho a dizer. Não falo com quem me ama. O amor é tão desconsiderado, tão insolente! Não quero nada com imprudentes, fica a saber. Estás enamorada dos meus espinhos, não é verdade?


Cegonha: Esse teu casaco de espinhos fica-te lindamente. Pareces muito bem com ele. Só é pena que sejas tão circunspecto. Um porco-espinho não havia de ter uma noção tão estrita do decoro.

Porco-espinho: Enganas-te, e vou corrigir-te. Uma cegonha pode permitir-se tudo, mas não um porco-espinho. És elogiada, elevada a ideal de educação e da família. Comunidades inteiras olham para ti com sincera admiração. Só despertas boas impressões. Já comigo não é assim. De que me serve a tua afeição? Estás perdida de amores pelo meu medo?

Cegonha: Sim, julgo que sim.

Porco-espinho: Não achas que me assenta lindamente? Fico tão redondo e apetitoso vestido do meu medo. Tenho espinhos porque tenho medo. Sou feito apenas de medo e vontade de fugir. Olha para a minha cabecinha, para os olhinhos, o narizinho. Não voo majestosamente como tu. Nada em mim aspira às alturas. As minhas patas são incompreensíveis, mas é por isso que sou tão engraçado, porque pareço tão tonto, tão indefeso. Não te pavoneies com as tuas asas, não! Não faço ninhos acolhedores no ar claro dos campanários. Moro na floresta e só à noite me atrevo a sair de mansinho.

Cegonha:
Tens timidez!

Porco-espinho:
Tens pena de mim. Mas eu não sei o que é ter pena. A compaixão é um sentimento grandioso. Não condiz comigo, que sou tão pequeno. Os meus espinhos, de resto, são puro escárnio, troçam de mim.

Cegonha: Troça então de ti o que serve para tua protecção. Amo-te ainda mais por esse teu desamparo.

Porco-espinho: Mas sou tremendamente bem-disposto. Nem imaginas como é magnífico viver dentro de um corpo ridículo. O meu bem-estar é de uma extrema originalidade. Sou invadido pela consciência deste meu aspecto engraçado. Tu, aliás, também és um tanto estranha.

Cegonha: Referes-te à nobreza do meu porte. Mas a culpa não é minha. Tenho este andar cerimonioso e comedido, mas é esta gravidade que me faz levantar voo. Percebes?

Porco-espinho: Proíbo-me de perceber o que quer que seja. O entendimento apenas me traria dissabores. Julgas que me daria ao trabalho de tecer considerações a teu respeito? Deixo as reflexões profundas para ti e para outros como tu. Tenho pena de ti por não conseguires deixar-me, mas diverte-me ter pena de ti. Por isso agora já não tenho pena de ti. Tenho a forma de um monte, vês, e dou a impressão de estar morto.

Cegonha: É uma grande vantagem. Admiro-te muito, estás a rir? (...)»

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Quem quer um apaga-memórias?







«O que o Howard dá ao mundo...deixar as pessoas começar de novo. É lindo. Olhamos para um bebé e é tão puro e tão livre e tão limpo. Os adultos são uma amálgama de tristeza e fobias. O Howard faz isso tudo desaparecer».


Na clínica Lacuna Inc., o médico Howard Mierzwaik desenvolve um processo de eliminação de memórias. A partir da criação, no cérebro, de um mapa, os técnicos da clínica conseguem extinguir o núcleo emocional de cada memória. Os pacientes querem fazer delete à dor, anseiam esvaziar o peito. E seguir sem stop's emocionais.

Mas pode a instrumentalização da razão apagar qualquer vestígio das emoções associadas a uma pessoa que se ama? Pode a ciência eliminar, em definitivo, a memória afectiva? Estas questões constituem o cerne do filme «O Despertar da Mente»[com o título original Eternal Sunshine of Spotless Mind], de Michel Gondry. Este filme, de sobriedade onírica, conta com as surpreendentes interpretações de Jim Carrey e Kate Winslet.

Amor e dor, tão dentro um do outro. A coexistência das diferenças numa relação amorosa: a timidez e introspecção de Joel e a extroversão e extravagância de Clementine. A relação estilhaça com a força das divergências. Clementine procura os préstimos do dr. Howard para apagar da memória Joel. E Joel faz o mesmo. Durante o processo de eliminação das memórias que o unem a Clementine, Joel redescobre o que o faz amar aquela mulher. A dor vai-se esvaindo, tal como os momentos felizes. Joel arrepende-se, mas todo o mundo afectivo criado com Clementine está a desaparecer, como um rio que descongela. Joel sente o desamparo da orfandade afectiva. Haverá retorno?


[O coração conhece o caminho para casa. Intuitivo e cego]


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Mar de Névoa

O Viandante sobre um Mar de Névoa, de Caspar David Friedrich (1818)


Menino Peer Gynt, este post é para ti. Porque O Viandante sobre um Mar de Névoa tem tudo a ver com o filme O Estranho Caso de Benjamin Button, porque tem tudo a ver contigo. E com a nossa conversa sobre. E com o modo como olho para tudo isto junto: para ti, Peer Gynt e Benjamin Button.

Em tudo vejo até a presença de um navio: no meu sonho [aquele sonho], na peça de Henrik Ibsen e no film
e de David Fincher [ri-te].

Dizias tu sobre O Estranho Caso de Benjamin Button: «Mostra um homem maduro, que vê a vida e a morte de forma muito natural, que vê a vida sem ambições. A vida como uma caminhada individual, um pouco solitária».

Sabes que um Homem, está só, tão só, na hora de entregar a vida, como oferenda, à morte. Sabes o quão lúcido foi Vergílio Ferreira, quando escreveu que «uma grande fracção da nossa vida vai para a cova connosco. Ou seja, o mais historiável de nós, mesmo para os amigos, leva uma pedra por cima». Tu sabes.


E tu não temes, não foges da solidão.



Transfusão de luz

Imagem de Xavier Rey


Está sol, as janelas abertas, tal como aberto quero o sorriso. Tenho carência de luz, de dias de sol, mais primaveris que tórridos. Hoje apetece-me sorrir. Gosto de mim assim, aparvalhada a olhar para um dia de sol, a ouvir a irrequietude dos passarinhos e dos miúdos na escola. Gosto de mim assim, a escrever coisas profundamente sensaboronas.



Quando o dia entrou em mim, lembrei-me logo deste poema:



«Claro que se tem medo que alguém nos entre pelos olhos.
Mas podes arder. Para a tua temperatura sou mercúrio,
linhas de mão, lábio e sopro. Atravesso-te porque me atravessas
e onde somos corsários rendemo-nos ao encanto da
devolução.

Tu e eu à porta de um lugar que vai fechar tudo numa árvore.
Aqui onde os minutos são a rua em que nos sentamos toda
a tarde à espera do silêncio, onde o teu corpo pesa a
medida exacta do meu desejo.

Sou um animal. Necessito diariamente da transfusão de uma
enorme quantidade de calor. Tocas-me?»

[ Vasco Gato ]

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Que personne ne soit oublié




Tout le monde est une drôle de personne,
Et tout le monde a l'âme emmêlée,
Tout le monde a de l'enfance qui ronronne,
Au fond d'une poche oubliée.

Tout le monde a des restes de rêves,
Et des coins de vie devástés,
Tout le monde a cherché quelque chose un jour,
Mais tout le monde ne l'a pas trouvé,
Mais tout le monde ne l'a pas trouvé...

Il faudrait que tout le monde réclame,
Auprés des autorités,
Une loi contre toute notre solitude,
Que personne ne soit oublié.
Et que personne ne soit oublié...

Tout le monde a une seule vie qui passe,
Mais tout le monde ne s'en souvient pas,
J'en vois qui la plient même qui la cassent,
Et j'en vois qui ne la voient même pas,
Et j'en vois qui ne la voient même pas...

Il faudrait que tout le monde réclame,
Auprès des autorités,
Une loi contre toute notre indifférence,
Que personne ne soit oublié.
Et que personne ne soit oublié...

Tout le monde est une drôle de personne,
Et tout le monde a une âme emmélée,
Tout le monde a de lénfance qui résonne,
Au fond d'une heure oubliée,
Au fond d'une heure oubliée.

Faz hoje três meses, que mudaste de morada. Hoje visitei-te. E lá estavas tu, com aquele sorriso trocista e desafiador. Quando escrevi aquele post, no domingo, nunca pensei que fosse a véspera. Não chegaste aos 100. Mas sei que amaste a vida.

Não consigo sentar-me junto à lareira, naquele espaço do sofá que era tão teu. Aquele espaço onde te vi morrer.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Reverdecer

Imagem de Enzo Penna


Levem-me as nuvens,
senão eu chovo-me.

O verde a meus pés.

Intempérie

A chuva maça-me.
Um pequeno tédio
para quem está habituado a intempéries emocionais,
existenciais e outras que tais.


Mimo



O selo foi-me oferecido pelo Robin K, menino de palavras pulsáteis.

Obrigada.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Sou toda ouvidos

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Máscara


Imagens de Sylvain Norget


Manel era aquele menino que gostava de saltar ao elástico com as meninas, nos intervalos das aulas. Manel era o rapaz que preferia as conversas adocicadas das meninas ao tribalismo aguerrido dos meninos. Manel era um adolescente cheio de gestos expansivos, com a vontade de conversar sempre desperta. Era usual vê-lo na rua, de sorriso animado, a trocar brasas de coscuvilhice com o mulherio de língua aguçada. Pedia conselhos às vizinhas sobre a melhor forma de passar a ferro uma camisa, o melhor modo de fazer um refogado.

Muitas vezes, a voz do povo chamava-o de menina, dizia que seria larila. Sempre pensei cá com os meus botões que ele, com aquele jeitinho morno de abraçar as meninas, é que era esperto [qual larila, qual gay, qual quê!]. Estava mais próximo delas, conhecia-lhes a sensibilidade, os segredos, a melhor forma de lhe conquistar os afectos. Mais esperto que os outros toleirões, que se julgavam muito machos por andarem à porrada uns com os outros ou aos apalpões às raparigas em florescência.

Manel cresceu, ganhou rosto de barba. Conheceu uma brasileira, de sensualidade arrebitada, que o levou ao namoro. E depois ao casamento. Entre uma coisa e a outra, para dar paredes ao amor, construiu uma discreta moradia. O papel social estava a ser consumado. Cumpriu todos os rituais que o povo casamenteiro intima a quem está solteiro [só ainda não cumpriu o papel que a sociedade exige a quem já está casado: ser pai].

Manel foi perdendo aquele riso fácil e franco. Passou a um estado de contenção. Os ombros desmoronados. Cumprimenta os conhecidos de sempre com a voz fechada.

Há uns tempos criou uma página no hi5. Optou por não revelar o rosto, só o nome. Começou por adicionar os conhecidos de sempre, para se sentir acompanhado, em silêncio. O círculo foi-se ampliando. Agora, nas recentes adições de amizade só se vêem homens que teimam em mostrar-se como pedaços de carne, músculos em erecção, cabelo amansado pelo gel.

As páginas de hi5 desses homens, de peito aberto, não escondem o padrão de interesse: conhecer homens. E os grupos a que se associam intitulam-se de Gaynamoros, Lisboa Encontros, Banheiros Masculinos, Broches, Punheta, Canzana e outros nomes assim de coisa explícita.

O Manel que só queria a companhia das meninas procura agora a intimidade dos homens. Se ganhasse voz, a ingenuidade perguntaria: se ser gai é ser alegre, porque é que ele agora é triste?

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Amores vulgares

Imagem de Alice Lemarin


Sinto-me a falhar os amores vulgares. Uma certa predisposição para falhar as possibilidades, as oportunidades palpáveis, viáveis. Silencio-as, desprezo-as, não dou espaço para a tentativa [mas penso e se, e se, e se]. Teimo nos amores etéreos, intensos de sentimento e intelecto, falhos no resto. Castelos no ar, sem desenho arquitectónico, sem engenharia, com alicerces profundos, mas em permanente estado de estaleiro. [Serei uma sem-abrigo como o Manhoso]


Quando amo, amo persistentemente. Sou dele porque dentro de mim há um lugar que é nosso. Ausência de olhos para outro, por mais belo, inteligente, sedutor, sensível, meigo que esse outro seja. Não tenho talento para silenciar a obstinação.


Mas não sou previsível. Ilude-se quem me julga ter como bicho domesticado. Reviro a minha vida, quando um sinal – o sinal - se insinua. Começa por ser vago, mas aos poucos torna-se espesso e indisfarçável. E aí decido facilitar a vida a mim própria.

[Cansaço de círculos]


Manhoso, sabes o que não me saia da cabeça enquanto escrevia este post? A história que uma amiga, das nossas lides profissionais, escreveu sobre uma família numerosa. Uma história de amor que tinha tudo para não existir, falasse mais alto o comodismo. Mas amar é desbloquear. E foi isso os protagonistas da história fizeram. Nos obstáculos rasgaram janelas.


Um portuense conheceu uma modelo lituana numa discoteca do Porto. Ela estava a passar férias em Portugal, com uma amiga. Ele perguntou-lhe onde estava alojada e ela mentiu-lhe. Ele fez por descobrir onde ela estava e deixou-lhe flores, na recepção da residencial. A modelo aceitou um convite para almoçar e não se largaram mais durante as férias.


No dia de partida, ele pediu-lhe que voltasse a Portugal. A rapariga, com noivo na Lituânia, pensou que nunca mais iria ter contacto com o jovem portuense. Mas o rapaz foi persistente e ligava-lhe três vezes por dia. Um dia, ela recebeu em casa uma carta, com um bilhete de avião com destino a Portugal. Ao chegar cá, foi surpreendida com um pedido de casamento. Sete meses depois de se terem conhecido, tornaram-se marido e mulher. Hoje têm seis filhos.


O amor pode ser isto…pura intuição, pura vontade de estar com o outro, sem pensar muito nos prós e contras da mudança. O amor pode ser deixar que a emoção vire a nossa vida de pernas para o ar.


Há dias em que determinadas histórias nos caem no regaço de supetão e nos fazem despertar. Esta deixou-me a pensar. Não vi ali, na história, nada de sofrido, nada de trágico, nada de épico. Um amor excepcional, de tão vulgar e firme que foi a vontade mútua de quererem estar juntos. Isso dos amores impossíveis, eles reservam para as sessões de cinema, ao domingo à tarde.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O que faz falta...

«O que faz falta são amores vulgares. Anda por aí demasiada gente a falhar o quotidiano, os grandes planos sobre as pequenas coisas, a luz da manhã sobre a pele dos amantes, os beijos anónimos à frente de esquadras de polícia. A verdade é que ninguém nos conta o que aconteceu à Cinderela e ao Príncipe Encantado. Dizem-nos que viveram felizes para sempre mas nós, que nunca os vimos acordar juntos, sabemos que não pode ser assim tão simples. Aprendam com o cinema: os épicos já não são o que eram».

Surripiei este post ao Pedro. É a minha forma de mostrar o quanto já fazia falta o regresso dele à blogoesfera. Se eu fosse mais cítrica, dizia-lhe que, pela ausência mais que prolongada, já merecia um murro nas ventas. Mas vou ser mais doce que acre e dizer: toca a postar!

Coração da pedra

Imagem de Simona Carli


«Chegámos ao amor pelos mapas vincados
da solidão. Quando o veneno das últimas
memórias se diluiu no sangue (como o
orvalho se evapora nos salgueiros assim
que março começa a conspirar), o nosso
silêncio gritou para que alguém o escutasse.


Despimos, pois, as estátuas um do outro
sem o temor de perturbarmos o coração
da pedra; e descobrimos que a nudez era
a única ponte que entre nós se estendia. (...)»


[Maria do Rosário Pedreira, in Nenhum Nome Depois]

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Banalização do mal

Imagem de Federico Bebber


Um imigrante indiano está hospitalizado em Roma depois de ter ficado gravemente queimado na madrugada de domingo, quando três jovens, incluindo um menor, o atacaram enquanto dormia na estação de comboio de Nettuno, no litoral a Sul da capital de Itália. “Regámo-lo com gasolina só para nos divertirmos. Queríamos saber quanto durava e era-nos indiferente se ele era negro ou romeno”, afirmou um dos jovens detidos.

Os três explicaram à polícia que queriam “experimentar algo novo” e foi “por diversão” e sem planearem que queimaram o jovem sem-abrigo de 35 anos, cita o site do diário espanhol El Mundo. O responsável dos carabineiros da região, Vittorio Tomasone, afirmou à agência Ansa que os agressores “não parecem ter agido por xenofobia”.


[o2.02.2009, Público online]

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Impressão regional

Imagem de Alfio Catania


Um dos melhores elogios que ouvi saiu da boca de um elemento da direcção da Sojormedia, holding do grupo Lena que constitui o maior grupo nacional de comunicação social regional, e que se prepara para lançar um jornal nacional. «Os teus textos são muito elitistas», disse-me ele. Esta afirmação soou-me a uma visão puramente mercantilista do jornalismo. Senti um certo tom de desprezo a envolver o conteúdo da frase: «Os teus textos são muito elitistas». O senhor Sojormedia referia-se, em particular, aos textos que eu escrevia para a secção de Cultura de um jornal. [Vá que a Sojormedia nunca pensou em recrutar, para as redacções, os trolhas e engenheiros civis que ajudaram o grupo Lena a fazer fortuna. E isso é louvável, cada macaco no seu andaime]

Já não me recordo do que terei respondido ao senhor Sojormedia. Provavelmente, não me terei empenhado muito a mostrar o que para mim é óbvio. Contra-argumentar seria exercício de puro desgaste. Explicar que se elitismo é tratar os leitores com respeito e não como débeis mentais, se elitismo é deixar transparecer que o jornalismo é fonte de prazer e não um frete, se elitismo é ter consciência de que um leitor só lê um texto se o jornalista o souber agarrar logo no primeiro parágrafo, se elitismo é contar uma história com sensibilidade, se elitismo é isso, sim sou elitista.


O nivelamento por baixo é uma coisa que me causa comichão [coisas de jornalistas armadas em elitistas]. Faz-me ranger os dentes a ideia de que um jornalista é um tapa-buracos, cuja grande missão é encher [seja com o que for] espaço vazio entre anúncios de publicidade. É atroz ver, muitas vezes, os jornalistas [não confundir com copistas] remetidos ao desprezo, com o departamento comercial a querer dar ordens na redacção. Só quem não conhece a imprensa regional, por dentro, é que não sabe a pressão que, demasiadas vezes, é exercida - descarada ou subliminarmente - sobre os jornalistas.


Por conhecer a imprensa regional, dá-me vontade de rir a [cândida ou pseudo?] preocupação da Entidade Reguladora da Comunicação Social. No dia 27 de Janeiro, em Leiria [ironia maior ser nesta cidade], o presidente da ERC afirmou: «Se a crise afecta e vai repercutir-se, por exemplo, no mercado publicitário, é provável, infelizmente, que também possa atingir este domínio da imprensa». Naquele que foi o primeiro de um ciclo de encontros com a imprensa regional de todos os distritos do país, Azeredo Lopes, referiu ainda: «Se isso acontecer, de alguma maneira a liberdade de imprensa sofre e isso é algo que preocupa o conselho regulador» da ERC. A imprensa regional não precisava do fantasma da crise económica mundial para estar em crise.


Gostava que a preocupação da ERC se traduzisse em actos reais. Gostava que se olhasse para a imprensa regional mais de perto, sim, sentir-lhe o pulso e não desviar os olhos da imprensa de proximidade. Gostava que fosse possível encontrar, em permanência, projectos regionais sustentáveis de real qualidade, com jornalistas com J, com administrações com amor pelo jornalismo e com uma visão ética do capitalismo. Aos leitores cabe também um papel maior: o de serem consumidores exigentes, atentos, esclarecidos.

Eu que já fui preconceituosa em relação à imprensa regional, eu que já me entreguei de corpo e alma [muita alma] a um projecto regional [que, em tempos, considerei exemplar porque tinha uma equipa singular], eu, que já tive orgulho de trabalhar na imprensa regional [ e que vi o mérito reconhecido por os pares nacionais], voltei ao desencanto. Contudo, há jornalistas sérios e empenhados em fazer jornalismo de qualidade em órgãos de comunicação social regionais. Jornalistas resistentes e angustiados.


É irrespirável trabalhar numa redacção onde os jornalistas são olhados, pela administração, como despesa inútil e como desejados pés de microfone dos anunciantes. Saí da imprensa regional, de cabeça erguida. Saí eu e os meus textos elitistas.