O Miguel Carvalho desafiou alguns bloggers a escreverem textos inspirados no tema «Ainda há futuros como antigamente?». Saiu-me isto:
Tu dás-me presente. E é isso que quero de ti. A tua presença, quando nos apetece. Contigo não me aprisiono nem ao sonho, nem à desilusão. Não quero que o futuro venha a correr, nem que o passado me agarre. Sabemos que o que temos é uma intermitência, uma doce fragilidade.
Preciso do parêntesis onde nos colocamos, desta barragem contra o futuro. Não falamos no vindouro, nem no passado. Deixamo-nos ir. Não esqueço as tuas mãos a taparem-me a boca, como quem diz: «Não metas filtros, silencia o teu censor, sente apenas. Sente-me». E eu deixo-me ir. Por não te esperar, por nada esperar de ti, tenho-te.
Amanhã vou surpreender-te. Falar-te-ei de futuro. Porque irei mudar, mudar-me. E vou continuar a querer presente e não melancolia ou ansiedade. Sei que a distância geográfica vai inibir-nos a espontaneidade. A lonjura vai fazer-nos pensar em futuro de tanto presente passado um com o outro. À distância resta-nos um caminho: um passo à frente ou um passo atrás. Vou antecipar-te e dar um passo atrás. Coisas de quem precisa de proteger o miocárdio (que seja).
Comigo longe, já não vais poder ligar-me a dizer que daí a 15 minutos vais passar por perto e que queres ser comigo. Os teus lábios não vão procurar os meus, ansiosos por um silente diálogo. Nem eu vou perguntar-te se estás pelo hospital e se podes descer até ao bar para um café nos tomar os gestos. Nem tu, de seguida, me convidarás para jantarmos juntos, dilatando a pausa no trabalho. Tu estás habituado a lidar com o presente. Interessa-te o aqui e agora do doente. Trazes contigo a urgência do agir. Sabes a exacta medida de um minuto, quando sais ao serviço do INEM. Estás habituado a ter vida entre as mãos. Por isso gosto tanto de sentir a palma da minha mão entregue à tua.
É perante o passado que eu ajoelho a minha vida. As escavações arqueológicas acendem-me o olhar. Tu gostas de mim assim, com pó nas veias e mãos na compreensão. Até já topaste o meu tique de, volta e meia, ao conversarmos ou ao caminharmos na rua, eu teimar em olhar para trás. Atribuis as minhas frequentes dores de barriga a uma congestão de passado. Lanças-me o teu humor: «Ó minha Cleópatra, lá estás tu com as tuas melan…cólicas!»
Amanhã. Amanhã, vou dar-te um abraço e sussurrarei aquela frase que sublinhaste no livro que tens na mesa de cabeceira: ‘Se jamais dois forem um, então nós’. Amanhã, irei atirar-te com o Antigo Egipto. Depositar-te-ei nas mãos aquele escaravelho de ouro que encontrei num antiquário, na rua onde, pela primeira vez, os nossos dedos se entrelaçaram como rede de pescar ternura.
Vou mentir-te. Vou dizer-te que te ofereço o escaravelho apenas por ser giro (ai como tu detestas esse adjectivo!). Vais ficar a olhar para o escaravelho, com a sobrancelha direita arqueada a censurar-me por ter gasto tanto dinheiro num objecto em ouro. Sei que a tua curiosidade irá chegar à simbologia.
Com o escaravelho irei pôr-te nas mãos a eternidade.
Agora, tão agora, sinto-me cobarde por não te conjugar no futuro.
6 comentários:
A menina que escreve magias...
leva laivos doces do passado, mas inscreve-te no futuro!
S
E saiu-te deliciosamente bem! É dos textos que mais gosto. E identifico-me muito com ele!
Voltaste em grande, como a grande mulher que te tenho no imaginário. Sei que, se noutro contexto, só podíamos ser amigas. Desejo-te (já acompanhando o post da frente) que os cortes de cabelo simbolizem todo o teu crescimento e toda a tua imensa energia. Desejo-te felicidade. Servida em pratos brancos, todas as manhãs, de todos os dias.
Lindo :-)
Este texto levou-me a algo que escrevi já algum tempo, mas mesmo assim, parabens pela escrita ;)
«Os caminhos são os mesmos e a calçada continua lá, intacta para com os de mais. Mas, os sentimentos renascem diferentes enquanto pela mesma calçada ainda piso. Em cada lugar há e sempre haverá um pouco de ti, em cada esquina um sorriso teu realça-me no pensamento, …, a troca de olhares subordinados ao que viria depois, as baladas da matriz que fazem estremecer tudo o que um dia, entrelaçadas nas mãos, levamos: a Eterna Amizade, enquanto que pela mesma calçada caminhávamos…» (este é parte do texto que escrevi ;)
força e muitos sorrisos (:
se entrasse numa livraria qualquer, abrisse um livro ao acaso, e numa página desmarcada lesse este texto, eu levava o livro para casa comigo.
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